LAÍS BRONSTEIN

30/01/2020 - Rio de Janeiro - Esta entrevista foi realizada por Ana Altberg, no âmbito de sua pesquisa de mestrado “A Arquitetura da Máscara de John Hejduk”, em curso na FAUUSP.

Laís Bronstein é doutora em Teoria e História da Arquitetura (Universitat Politècnica de Catalunya - Espanha, 2002), Mestre em Arquitetura (Universidade de São Paulo, 1996), Arquiteta e Urbanista (Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987). Atualmente é Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ (PROARQ) e Professora Agregada do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da PUC-RJ. É autora de uma série de textos sobre o arquiteto John Hejduk e sobre temas relacionados à sua obra.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única - Infância berlinense: 1900.

EISENMAN, Peter. The End of Classical: The End of the Beginning, the End of the End(In: Architectural Theory Since 1968).

HAYS, Michael. Hejduk’s Chronotope.

ROSSI, Aldo. A Arquiteturada Cidade.

SOLÁ-MORALES, Ignaside. Diferencias: topografía de la arquitectura contemporánea.

TEYSSOT, Georges. Prosthetic Architecture: an Environment for the Techno-body.

VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura.

VIDLER, Anthony. The Architectura luncanny: Essaysin the modernunhomely.

VIDLER, Anthony. Warped Space: Art, Architecture, and Anxietyin Modern Culture.

Você poderia comentar sobre a nebulosidade que John Hejduk cria em torno da própria noção de Máscara em seus projetos?

Laís Bronstein: Uma das artimanhas do Hejduk é a alternância que ele faz entre os termos “Masque” e “Mask”. “Masque” seria um baile de máscaras, um baile de disfarces, cuja tradução é mascarada, e "Mask" seria a máscara mesmo. A “Masque” pode ser entendida como um grande universo circunscrito em si, que inclui seus personagens. 

Ele deixa essa diferença clara em algum momento? Porque já percebi que a cada hora usa uma palavra, até me perguntei se existiria algum problema de tradução quando as duas aparecem, como se “Mask” fosse em inglês e “Masque” em francês.

LB: Ele escreve das duas maneiras em inglês mesmo. Se não me engano, isso fica mais claro no projeto “Berlim Masque”, onde existe o "Cuidador da Máscara", que ele chama de "The Mask Taker" que ele descreve como: "Ele cuida da Masque", que seria a mascarada, que seria o contexto maior. Então realmente é uma confusão, quando você acha que desvendou um enigma, ele rapidamente te deixa em dúvida.

Outra questão que pode ser vista na tese da Marina Correia [tese de doutorado defendida na FAU-USP, na qual Laís participou da banca] é que existe uma inflexão na obra dele, ainda que ele não admita claramente.. É como se tivéssemos que entender toda sua produção até mais ou menos 1973 como aquela pesquisa ensimesmada sobre o objeto, a geometria, a profundidade, a busca que ele perseguia com todas aquelas casas - a “One-Half House”, “Wall House” que ele associa ao que chama de “momento da Hipotenusa", “Texas House” etc.

Essa produção inicial que pode ser identificada no contexto dos Five Architects de Nova Iorque.

LB: Nesse momento ele quer entender arquitetônicamente a arte das vanguardas, notadamente o Cubismo e o Neoplasticismo. Ele intitulou um dos exercícios que aplicava aos alunos na Cooper Union como "Juan Gris" [referência ao pintor cubista espanhol], que consistia justamente numa tentativa de dar a terceira dimensão - a profundidade - às pinturas cubistas. Ele queria entender a possibilidade arquitetônica daquilo, levar aquele espaço às três dimensões, em oposição à planaridade da pintura, ainda que esta remetesse à noção de “espaço-tempo”. Essa é a questão inicial dele.

Em um dos artigos que escrevi sobre Hejduk, uso a ideia de "Fundamentalismo" para caracterizar esse universo ensimesmado de pesquisa. Seria essa volta à ideia de arquitetura a partir da sua elementaridade - forma e geometria - dissociada de qualquer alusão ao mundo real. Você não vê ele falar de usuário, de contexto, de nada disso nessa primeira fase.

Depois, o que acontece na década de 1970 é que ele participa de uma exposição em Zurique junto com o Aldo Rossi, onde estabelece contato com a obra do arquiteto italiano pela primeira vez. Ele vê os desenhos da "Cidade Análoga" [La città analoga, desenhos desenvolvidos a partir de 1969 na segunda edição de seu livro L’Architettura della città] e começa a entender como a partir de uma pesquisa tipológica, Rossi transpõe o abismo entre a pesquisa objetiva/ciência urbana exposta em "Arquitetura da Cidade" [1966], para a operação figurativa através do recurso à analogia. Hejduk observa como Rossi transforma um mecanismo interpretativo de compreensão da cidade em um mecanismo operativo, de projeto. É um salto que Rossi realiza por meio da analogia. Um salto subjetivo, que também pode ser entendido como uma licença poética.

Hejduk percebe esta transposição e é justamente isso que o encanta. Essa abordagem do Rossi foi um choque para ele. Hejduk então passa a lidar com atmosferas de cidades e acha que pode preencher aquela arquitetura, povoar aquelas “cidades análogas”, assim como ele queria transformar as pinturas cubistas em arquitetura. E daí vem toda a aura do que seria o choque entre a cultura americana e a cultura milenar européia. Acho que não é à toa que os projetos das Máscaras começam em Veneza. Veneza não tem o Carnaval, não tem o Baile das Máscaras? Acho que é um caminho a ser explorado, é uma questão que fica no ar.

Numa das entrevistas da publicação "Mask of Medusa" [1985], Hejduk diz que sua obra não passa por nenhuma ruptura, que faz parte de uma transformação contínua e que a única mudança que ele percebe é que a partir de seus projetos para Veneza sua arquitetura passa de uma arquitetura do otimismo para uma arquitetura do pessimismo. 

Ele também fala no “Mask of Medusa” que sua referência para essa noção de máscara seria o arquiteto britânico Inigo Jones, que projetava cenários e figurinos teatrais nos séculos XVI-XVII. E que também remeteria a uma cultura de mascaradas que existe desde a Idade Média na Inglaterra.

LB: São várias referências, mas efetivamente o que é colocado por um dos autores no livro "Hejduk's Chronotope" é que ele trabalha em arquitetura com o mesmo subterfúgio que os poetas trabalham a poesia. A arquitetura dele seria uma máscara para acessar uma realidade mais profunda. Eu particularmente acho interessante trabalhar a questão da máscara a partir do conceito de alegoria, por isso que recorro aos textos do Walter Benjamin. Diferente do conceito de analogia trabalhado por Rossi, o conceito de alegoria revela uma face enquanto esconde outra. Não é uma relação unívoca, mas uma que demanda articulação intelectual para acessar sua verdade. Acho que você pode se aproximar da questão da máscara literalmente - vendo suas definições ao longo do tempo -, mas também conceber a máscara como um mecanismo de ocultar e revelar simultaneamente algumas questões.

Michael Hays vai situar a obra de Hejduk como um alinhamento com a crítica pós-humanista, onde o pensamento em arquitetura se desvincula de qualquer referência existencialista. A crítica que Peter Eisenman faz nos textos "O Fim do Clássico" e no “Pós-funcionalismo” também se refere a isso. Em” Pós-funcionalismo” Eisenman fala que em arquitetura, diferentemente das outras artes, o Modernismo ainda não teria acontecido, porque a arquitetura estaria atada a demandas existenciais.Seria necessário então livrar a disciplina de sua visão antropocêntrica. "O Fim do Clássico" coloca em xeque várias questões, associando-as à ideia ficção: a ficção da representação, a ficção do significado, a ficção da verdade. Também fala sobre ausência de presente, ausência de passado e de futuro - Eisenman diz que o pensamento arquitetônico não poderia mais estar associado a essas constantes e seria preciso pensar desde outro entendimento disciplinar.

Acho difícil encaixar o Hejduk nessa narrativa do Eisenman de “O Fim do Clássico” porque enquanto o Eisenman parece ter continuado nessa especulação formal “pós-humanista” ao longo de sua obra, o Hejduk toma um rumo bem diferente. Parece que ele desvia muito radicalmente das noções do fim do clássico, fim da história quando ele investe em projetos muito figurativos, antropomórficos, com bonecos, com figuras e tipologias circenses e uma iconografia folclórica...

LB: São dois personagens totalmente diferentes. O Eisenman é muito panfletário, é uma pessoa de mídia, promotor de eventos, de agendas, de tendências, é um arquiteto de mercado que vendia seus projetos; enquanto o Hejduk é uma figura muito low profile que se dedicou quase que exclusivamente à docência. Esse seu ensimesmamento é um aprofundamento da sua maneira de ensinar. Ele queria encontrar o caminho para pensar a arquitetura e as respostas arquitetônicas aos problemas que estavam em pauta. Hejduk está profundamente ligado à experimentação das vanguardas arquitetônicas modernas, mas descolado de toda questão utópica, da ingenuidade sobre a inauguração de um novo mundo. Sua arquitetura reflete um desencantamento, mostra toda essa dissolução.

Mas, por outro lado, uma coisa interessante é que todos os projetos do Hejduk podem ser construídos, são detalhados. Em uma entrevista publicada em “Mask of Medusa” em que Eisenman falava que as máscaras são projetos impossíveis de habitar ou entrar, ao que Hejduk o contestou respondendo: "não, é VOCÊ que não consegue entrar".Hejduk sempre viu seus projetos como pura arquitetura.

 

Tenho uma dúvida em relação a isso: Você sabe se as estruturas de máscaras construídas tinham um interior acessível? Além de não ter um uso declarado, eu pensava que ele fazia coisas propositalmente inacessíveis, como aquele projeto de Riga [Riga Project, 1987] que não tem uma escada para chegar ao interior das estruturas muitos metros acima do chão, são estruturas incessíveis.

LB: Não sei dizer sobre o de Riga, mas os de Barcelona são acessíveis, funcionam quase como mirantes.

Voltando à questão formal, percebemos que ele tinha uma obsessão com a geometria. Quando ele começa a trabalhar as "Diamond Houses", ele está dando profundidade à figura geométrica primária do quadrado. O quadrado visto em perspectiva axonométrica é um losango, um “diamante”. E depois com as máscaras, ainda que tenham essas figuras “alegóricas” desenhadas, efetivamente todas são geometrizadas, funcionam como um lego. É um vocabulário reduzido, são poucas palavras usadas, o arranjo que varia. Cada palavra é uma figura geométrica. Acho que há uma continuidade na sua pesquisa formal desde o começo, uma busca pela profundidade da arquitetura. Mas nessa segunda fase, ele insere a narrativa, que por sua vez tem a ver com a questão da ficção de que fala o Peter Eisenman.

São muitas entradas possíveis na obra do Hejduk. Um dos conceitos que esses arquitetos que escreveram para o “Hejduk’s Chronotope” falam é sobre a Facialidade de Deleuze e Guattari. Eu usei em um artigo o conceito de "corpo sem órgãos" [de Gilles Deleuze], e quem faz essa alusão é o Ignasi de Solà-Morales num dos textos do livro "Diferencias: topografía de la arquitectura contemporánea" [1995]. Essas referências em filosofia são super interessantes, mas é importante que estejamos estudando arquitetura e aterrissemos neste campo. Acho que devemos insistir em trazer essas ideias para a arquitetura e não o contrário.

Um conceito que você e os autores do “Chronotope” citam é o de "Máquinas Abstratas", também de Deleuze e Guattari.

LB: Acho que esses termos estão bem desenvolvidos no “Chronotope”, os autores são bastante generosos. Algumas pessoas trazem a questão filosófica e linguística para o campo da arquitetura, sugiro que você leia esses intermediários para começar, como o Michael Hays, Anthony Vidler e Ignasi de Solà-Morales. Você usa o que pode iluminar sua pesquisa, o que te intriga. Você vai terminar seu mestrado e vai continuar sem entender a obra do Hejduk porque é uma obra aberta.

Talvez por isso seja interessante estudar Hejduk a partir de suas operações projetuais, seus mecanismos formais, o espelhamento, a simultaneidade.

LB: A tese da Marina Correia estabelece alguns atributos e isso é bacana. A questão da geografia, por exemplo, você vai ver que nos projetos de Veneza os personagens se moviam, mas as estruturas não. Já em Berlim, o que se move são as estruturas. Outra questão é que certas estruturas têm o mesmo nome, mas apresentam configurações distintas, enquanto outras, ao contrário, tem nomes diferentes e utilizam-se das mesmas figuras.

Essa contradição me interessa bastante.

LB: Pode ser bacana buscar essas contradições e especificidades. Você pode analisar projetos específicos, ou estabelecer algumas categorias que te instigam e buscá-las nos projetos que dialogam com isso.

Eu tenho uma série de perguntas sobre termos que você usa nos seus artigos sobre o Hejduk. Por exemplo, sobre a noção de autonomia. No artigo "Rua de Mão Dupla", escrito em colaboração com o Andrés Passaro, vocês dizem que a “Prática arquitetônica da década de 1980 que suplanta a ideia de autonomia formal em vista da incorporação da prática literária e da busca pelo textual em seus projetos”. A questão da autonomia está muito presente no campo da arquitetura nesse período pós-moderno, bastante evocada pelo Eisenman, só que por outro lado os modernos também buscavam uma forma de autonomia, sobretudo formal, em relação à iconografia historicista. Como essas ideias de autonomia se relacionam?

LB: A ideia de autonomia foi uma pauta compartilhada por vários arquitetos nesse período. O Hejduk não fala tão claramente, mas tem a ver com isso. O Eisenman, o Rossi, o Manfredo Tafuri, o Ezio Bonfanti, sobretudo os italianos colocaram muito essa questão que é a base do que fundamenta essa crítica pós-moderna. Um dos primeiros números da revista de arquitetura da escola de Harvard se chama "Autonomous Architecture" [1984] e fala sobre isso. Oriol Bohigas tem um livro chamado "Por uma arquitetura não adjetivada" [1969] que também se insere nessa discussão.

Existia uma necessidade de separar a substantividade da arquitetura de qualquer referência existencialista, e de interpretações fenomenológicas. Uma necessidade de entender a arquitetura como disciplina a partir das suas questões intrínsecas - leia-se forma, geometria, linguagem. Eles queriam desatar o mundo formal da arquitetura das questões adjetivas. Reivindicam uma arquitetura em si, strictu sensu, que não fosse uma arquitetura funcional, tecnológica, produtivista, econômica. O que caracteriza essencialmente a arquitetura e que a faz distinguir-se das outras disciplinas? O mundo das formas.

Então existe uma transposição na arquitetura do pensamento estruturalista, pensamento que tem como base o estudo da linguística. Então você cria a ideia de uma estrutura que só pode ser validada a partir dela mesma, e não a partir do que está fora. A autonomia entra nesse sentido. Rossi fala que é claro que a arquitetura dialoga com outras disciplinas, mas o mundo da arquitetura tem que ser tão cristalino quanto o mundo das formas. Por isso Eisenman vai fazer aquelas casas numeradas, todas em preto e branco, sem falar em pilares e lajes, mas falando em pontos, linhas, planos. É um esforço de tirar a arquitetura da sua dependência humanista. Nenhum dos Five Architects falam do lugar onde estão aquelas obras ou aludem ao cliente, eles simplesmente numeram suas casas. O memorial descritivo é substituído por diagramas que explicitam o processo de geração da forma. O projeto passa a ser qualquer momento em que este processo é interrompido, mas cujo entendimento não pode ser acessado fora deste mecanismo.

Eles também afastam a arquitetura de qualquer pretensão de projeto social.

LB: Isso acontece logo na primeira fase, como uma fase de depuração. O que a gente vê na crítica ao movimento moderno? É que todo aquele viés racionalista, funcionalista, a própria questão da cidade ser uma máquina diferenciada de funções levou à pergunta: e a arquitetura? Qual é o mundo específico da arquitetura? Essa crítica acredita que as formas e o vocabulário da arquitetura moderna devem ser tão legíveis como o de qualquer outro período. Assim a arquitetura é inserida num contínuo histórico, num sistema estrutural auto legível e justificável somente a partir de relações internas. Quando você estuda a estrutura historiográfica dos textos da arquitetura moderna, como Giedion ou Pevsner, sempre existe a ideia de se criar uma história seletiva, estabelecendo uma origem que leva à evolução, rumo ao progresso da arquitetura. O entendimento de uma arquitetura autônoma passa pela desvinculação das formas de qualquer relação mecanicista ou ideológica, o que pressupõe a existência de um vocabulário atemporal e dissociado de contextos específicos.

A ideia de "Fundamentalismos" que coloco no meu artigo “As coleções de Aldo Rossi e John Hejduk” seria a necessidade de traduzir a arquitetura ao grau zero. A relação com a linguística e o pensamento estruturalista são desdobramentos disso. E no segundo momento aparece a questão da narrativa, quando esse entendimento tão ensimesmado e fundamentalista é esgotado. Então, a chamada crítica pós-moderna vai buscar um alinhamento com o pensamento pós-estruturalista, que tem a ver com a questão da diferença de Jacques Derrida. Toda essa ideia de ficção vem disso, do esvaziamento do significado. As palavras (signos) são compostas pela relação significado/significante - o significante é a forma e o significado traduz algo que é contingente. Num determinado momento uma forma da arquitetura clássica representava a pólis grega, noutro momento essa mesma forma poderia representar o poder de um regime fascista ou alguma questão religiosa. Esses arquitetos querem esvaziar a forma de qualquer conteúdo, ou seja, querem o signo esvaziado do significado. Eles buscam entender o valor do significante como este grau zero, sem relação funcional como qualquer significado estabelecido.

A questão da linguagem está implícita em livros como "A linguagem da arquitetura pós-moderna" [Charles Jencks, 1977], "Arquitetura da Cidade" [Aldo Rossi, 1966], "Complexidade e Contradição em Arquitetura" [Robert Venturi, 1966]. Venturi estabelece operações linguísticas, como a metáfora, a analogia, etc. Ele não fala da história da arquitetura, não inventa uma construção teleológica da história, e sim entende a arquitetura como um sistema no qual algumas relações podem ser estabelecidas. Com isso, não estou afirmando que essa arquitetura é de fato autônoma, mas sim que havia uma necessidade de se substantivar a arquitetura em detrimento de seus condicionamentos funcionais, tecnológicos, ideológicos, etc.

Em algum momento você fala de Arquitetura Conceitual, se referindo a essa geração de arquitetos.

LB: Sim, alguns autores falam disso. O Ignasi de Solà-Morales, o [Josep Maria] Montaner. A arte conceitual seria um contraponto à arte pautada no entendimento perceptivo, da metodologia visual. Andrés [Passaro], no texto intitulado “Linguística e estruturalismo na arquitetura dos 70” faz uma analogia entre essa produção arquitetônica e a chamada Arte Conceitual, que teria sido inaugurada por Marcel Duchamp com A fonte [1917].

Na Arquitetura Conceitual, a fruição da obra de arte partiria do intelecto, enquanto na obra da Arquitetura Moderna partiria da interação sujeito-objeto. Enquanto os mecanismos gestálticos de apreensão da obra independem do intelecto observador, na arte conceitual a percepção do objeto é insuficiente, é necessário partir de um mecanismo intelectual.

Essa arte conceitual estaria sempre dentro do universo de operações linguísticas, deslocamentos e afins.

LB: Claro, a questão da linguagem tem a ver com o processo intelectual, enquanto a apreensão da arquitetura e da arte abstrata tem a ver com a experiência, com a fenomenologia. O estruturalismo se opõe à fenomenologia, à razão ocidental, surge com os estudos sobre o inconsciente de Jacques Lacan.

E a máscara também está ligada a noções freudianas.

LB: O Hays fala coisas específicas do Freud e do Lacan. Eu entro nesse campo pelo Vidler que fala do "uncanny", da ideia de estranhamento. Eu parto disso e trabalho a ideia de mal-estar, que não é tratada por Vidler. Mas a ideia de estranhamento me autoriza a fazer essa transposição para o estudo de Hejduk.

Como essa questão da Arquitetura Conceitual seria aplicada nesse primeiro momento dos Five Architects? E como se aplicaria à obra posterior de Hejduk?

LB: Essa obra inicial do Hejduk, antes das Máscaras, tem tudo a ver com a arte conceitual porque ela se insere dentro de um sistema de conhecimento que lhe é próprio. As máscaras também podem ser entendidas como uma grande estrutura, o problema é a questão figurativa. Quando ele começa a trazer alusões antropomórficas você começa a questionar se de fato tem a ver com uma noção humanista ou pós-humanista, no caso, situada fora da razão ocidental.

O texto do Solà-Morales "Da autonomia ao intempestivo" vai falar isso, o intempestivo talvez seja o que chamam de pós-estruturalismo. Mas a questão é que essa busca começa da necessidade de uma chamada à ordem. Questionar o que é a arquitetura, quais são seus limites, qual é sua abrangência, qual é seu métier? Rossi faz isso em "A Arquitetura da Cidade", mas chega um momento em que a crítica posterior percebe que a cidade é muito mais do que a arquitetura. A cidade que se estudava naquele momento era a cidade funcional, então claro que tinha que ser um autor italiano que problematizaria essas questões, alguém que experimentava o peso da tradição histórica e não conseguia projetar por falta de espaço. Alguém que tem que pensar a partir do existente. 

Peço que esclareça o que seria essa passagem da sintaxe ao texto, a que você se refere na seguinte citação: "Uma vez retirado o homem (sujeito) como agente discursivo, e mais radicalmente, como ente gerador de significados, nada mais resta à arquitetura que o recurso à ficção. Esse posicionamento marca um deslocamento da ‘sintaxe’ ao ‘texto’ na prática de determinados arquitetos.”

LB: A sintaxe seria justamente essa questão mais estrutural da relação entre significantes, e o texto estaria ligado à ficção. Isso é a crítica estruturalista de Michel Foucault presente em "Arqueologia do saber", "As palavras e as coisas". Ele traça uma história do saber - não uma evolução, porque a própria ideia de evolução contradiz este pensamento. Foucault propõe uma arqueologia das estruturas invariáveis que possibilitaram o aparecimento de determinados saberes em determinadas épocas. Diferentemente de uma historiografia, de uma história oficial onde determinados acontecimentos seriam pontos de inflexão para mudanças, como por exemplo o surgimento do Marxismo, ele faz isso a partir do saber. Ele chama os saberes que prevalecem por determinados períodos de ‘epistemes’, episteme renascentista, a episteme clássica e assim por diante. Para ele, o homem aparece como um ente positivo na transição para o saber moderno, quando homem vira um ente a ser estudado, é o período em que emergem as chamadas ciências humanas. Quando esse homem deixa de ser estudado na sua positividade, ocorreria a chamada “morte do homem”, ou a “morte do sujeito”. O sujeito não é mais aquele gerador e objeto de saber. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss, por exemplo, vai trabalhar em cima dos traços, dos objetos, não das relações humanas em si. O homem passa, as estruturas permanecem: os objetos ritualísticos, as máscaras.

O Hejduk estaria nesse universo pós-humanista, não-intervencionista, em oposição aos modernos que se enxergavam como pioneiros e agentes de transformação?

LB: Justamente, o entendimento da arquitetura passou a ser o de uma ciência positiva. Essa questão negativa sobre a qual Eisenman vai falar nesses textos citados é uma arquitetura onde o homem não está no centro do saber, onde a arquitetura seria um saber em si, aí ele fala que essa morte do homem acontece justamente com a psicanálise onde o homem não é estudado a partir da sua participação ativa, mas a partir de um inconsciente, que não está relacionado à razão ocidental. Seria uma ruptura com a razão ocidental que dominou o panorama desde o final do século XIX. Foucault trata disso, mas Eisenman é um dos primeiros que vai traduzir esta discussão filosófica para a arquitetura, então nesse sentido ele é muito importante, é um autor engajado em pensar essas questões, alguém que se dedicou a filosofar em arquitetura.

Voltando um pouco à questão da "diferença" de Derrida e sua relação com Hejduk... Isso teria a ver com o Surrealismo?

LB: Pode ser, o Hejduk é relacionado por vários autores às práticas surrealistas.

No livro “ Privacy & Publicity - Modern Architecture as Mass Media” [1994], Beatriz Colomina compara as fachadas das casas de Adolf Loos a máscaras, fala que são como telas entre universos dissociados, entre o público e o privado. Ela diz que as fachadas funcionariam como um mecanismo de diferença.

LB: Esses conceitos filosóficos são usados com muita flexibilidade, seria uma forma de atualizar essa questão. A questão da diferença está nessa ruptura entre significado e significante.

No seu texto a noção de rastro aparece nessa citação de Derrida sobre a diferença: "A diferença é o que faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que cada elemento dito ‘presente’ (...) se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se chama presente, que aquilo que se chama passado, e constituindo aquilo que chamamos presente por intermédio. "

Eu fiquei interessada nessa noção de rastro porque me parece algo muito presente na obra de Hejduk, tem muito a ver com algumas coisas que o ele fala, como que ele projeta “sobre linhas apagadas”, linhas fantasmas, toda essa evocação de uma poética-espiritual da aura, e quando ele diz que estamos vivendo em comunhão com o passado que a gente não acessa mas que se faz presente. Você até cita essa passagem que é bem bonita.

LB: Sim, ele era leitor de Rilke que tem muito a ver com isso. Ele diz que sua esposa que apresentou a poesia de Rilke e a literatura em geral para ele. Ele sempre fala dela com muita admiração. Quem traduz essa questão temporal para a arquitetura é o texto "O Fim do Clássico" que trata dos tempos presente, passado e futuro na arquitetura nesse contexto do desvinculamento entre significante e significado. Todos esses significantes estão aí soltos para serem apropriados, usados da maneira que cada um quiser. Ressignificados, por assim dizer.

Na introdução do “Vítimas” aparece a ideia de raio-x, mas eu acho que tem a ver com a própria mobilidade desses personagens-estruturas, com essa errância. E isso é Walter Benjamin: "que os traçados arquitetônicos são aparições, rascunhos, ficções, não são esquemas, são fantasmas, desaparecem..." E essa ideia de atualizar. São assombrações, Hejduk diz que "os traçados são similares aos raios-x, penetram internamente.” Ele chega em Berlim e fala que as estruturas haviam desaparecido, mas era possível sentir a sua aura.

Essa associação que vocês fazem no artigo “Rua de Mão Dupla”, relacionando o projeto de “Victims” de Hejduk ao texto “Rua de Mão Única” do Benjamin foi algo identificado por vocês? Você acha que Hejduk fez essa relação direta entre o projeto “Victims” e o texto do Benjamin?

LB: Eu acho que Hejduk seria um contador de histórias à maneira de Walter Benjamin, o que não quer dizer que ele era um leitor de Benjamin. Eu sei que ele lia Rilke, Kafka, mas ele entendia a história e a representação de maneira similar à de Benjamin. Ele é um outsider da mesma maneira que o Benjamin foi no seu momento, na incredulidade em relação àquela história que estava sendo contada. Na segunda fase da sua obra, Hejduk se torna um contador de histórias.

"Rua de Mão Única" [1928] é um dos últimos livros de Benjamin, você vai ficar chocada com a semelhança com os textos de Hejduk. No texto “A tarefa do tradutor” (1921) Benjamin diz que “nenhum poema dirige-se ao leitor, nenhuma sinfonia aos ouvintes…” ele retira a interpretação subjetiva da obra. O que importa é o processo entre o autor e a obra. Toda sua narrativa é fragmentária, tanto na forma quanto no conteúdo. Nos textos do Benjamin você encontra coisas que Gilles Deleuze e Felix Guattari vão falar muito tempo depois, mas em Benjamin é mais palpável, e é muito revelador.

No fim das contas, Benjamin está ali no momento de incredulidade frente a todas as questões de uma sociedade dita racionalista. O racionalismo ocidental está desmoronando, Benjamin era judeu e se suicida. Ele busca fragmentos de uma história que não é a história oficial. Busca ressignificar os rastros latentes de uma história deixada de lado. Fala sobre noção de constelação, sobre o relampejar... Como se o passado relampejasse e você pudesse trazer um fragmento de volta, como se estes fragmentos necessitassem ser atualizados por outras histórias, outras narrativas. O que estamos fazendo ao estudar a obra de Hejduk é também uma atualização, na medida que aquilo está relampejando, que está clamando por ser percebido. No fim das contas, acho que ele é um dos fragmentos. Ele era aquele cara que não se autopromovia, mas que foi marcante para todos os arquitetos da época, todos homenageiam o Hejduk como o grande professor que tiveram. Ele foi diretor da Cooper Union até sua morte, por mais de 30 anos. Ele estava ali esquecido, mas como produziu tanto e instigou tantos, hoje estudamos Hejduk.


E pensando na relação entre narrativa e máscara, a primeira coisa que vem à mente é ideia de que a máscara é usada para ocultar algo. Mas na obra do Hejduk não existe um objeto específico que está sendo ocultado, ele parece mais operar livres associações e comentários sobre a sociedade que ele testemunhava. Existem narrativas punitivas, como a “New England Mask” que ele justifica como sendo um retrato da sociedade, em conversa publicada na “Mask of Medusa”. Às vezes tento entender o que ele está alegorizando, mas não parece possível chegar a este objeto, talvez essa tentativa não seja uma chave de compreensão da obra dele.

LB: Assim você vai cair na armadilha dele. Uma coisa é analisar o discurso escrito, ele ora utiliza pedaços de poemas, ora conceitos, ora uma descrição mais banal. Outra coisa são os desenhos.

O que você entende quando Hejduk diz que a “Máscara” era um novo programa que ele proprunha para arquitetura, “condizente com os tempos em que vivemos” [Mask of Medusa]? Como seus projetos de máscaras podem ser entendidos como programas, que tipo de programa seria esse?

LB: Acredito que a ideia de um programa condizente com o tempo em questão seja uma, ou mais uma, provocação do autor. Se entendemos “programa” como uma vinculação funcional à determinada solicitação, Hejduk espacializa a sua incredulidade à própria possibilidade de ainda trabalhar a partir destas condicionantes. Ele desloca essa relação para uma dispersão de possíveis rituais que gravitam, incorporam momentaneamente, ou personificam essa impossibilidade. No caso das máscaras, toda uma cidade, seu imaginário, sua aura, é ressignificada a partir de significantes (formas, figuras, símbolos, personagens) que performatizam a resposta de Hejduk a essas solicitações.

Você poderia comentar o motivo pelo qual usa a noção de alegoria e não de simbolismo para ler a obra de Hejduk?

LB: Porque alegoria é um dos subcapítulos de um livro do Benjamin. Ele vai tratar a questão da alegoria relacionada à Arte Barroca. Lendo esse livro sobre o barroco, parecia que eu estava lendo sobre o Hejduk. Como eu já trabalhei com a questão da analogia no Aldo Rossi, percebi que a ideia de alegoria se aplica bem à obra do Hejduk. Aprofundar a ideia de alegoria faz sentido porque existe um entendimento não linear, não objetivo ou direto, diferente da lógica dos símbolos e da analogia.

E tem a ver com o fato de que a máscara não fala de uma coisa específica, mas está condensando várias informações e referências e dando uma resposta poética a múltiplos estímulos.

LB: Você pode fazer um roteiro e mapear a primeira vez que aparece a máscara no texto dele, nem que seja o título de um apêndice do seu trabalho, acho que isso seria muito útil pra você e para outras pessoas que vão pesquisar a obra de Hejduk. Você pode tentar entender ao que ele se refere, a quais desenhos e personagens cada citação se relaciona. E você também podia fazer uma análise objetiva para entender a diferença entre “Mask” e “Masque”.

A questão do sujeito-objeto também é bem enigmática. Quando ele coloca arquitetura como personagem antropomórfica parece que a própria arquitetura se torna o sujeito. Só que às vezes ele separa o sujeito do objeto.

LB: Ele esfumaça essas barreiras. Você não sabe se é teoria, prática, sujeito, objeto, personagem. A princípio ele cria uma figuração antropomórfica, mas o seu conteúdo é totalmente esvaziado de qualquer relação humana, ele fala muito de anjos, de animais mitológicos, isso também tem a ver com Rilke. Ele não aborda o homem, mas sim as assombrações que o rondam e que tem uma feição humana: o boneco, o anjo, o autômata, a Medusa... Benjamin também faz isso. Hejduk descreve sujeitos autômatas que desempenham determinado papel e cumprem determinados rituais. Personagens com aparências humanas, porém esvaziados de vida. São vidas fictícias.

Isso é bem atraente.

LB: O Vidler (em "Warped Space") e o Georges Teyssot também falam disso, e da ideia errância. O Teyssot trabalha a questão da prótese, do parasita, de todo esse imaginário que a figura humana desempenha como referência. A máscara pode ser inscrita neste viés.

Ótimo, muito obrigada. 

BÁRBARA WAGNER & BENJAMIN DE BURCA

30/11/2018 - Rio de Janeiro - Esta entrevista foi originalmente publicada no livro 8 Reações para o Depois (Ed. Riobooks, 2019).

Bárbara Wagner & Benjamin de Burca (Brasil/Alemanha) é um duo de artistas. Seus trabalhos em fotografia e vídeo estão centrados no "corpo popular" e suas estratégias de subversão e visibilidade entre os campos da cultura pop e da tradição. Desde 2011, trabalham em colaboração, participando de diversas exposições, como o 33o Panorama de Arte Brasileira (2013), a 32a Bienal de São Paulo (2016), o 5o Skulptur Projekte Münster (2017). Neste ano representam o Brasil na 58ª edição da Bienal de Arte de Veneza (2019).

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Como vocês buscam relacionar narrativas fictícias e documentais nas suas pesquisas? E como situam o trabalho que fazem em relação à arte, ao cinema e ao jornalismo?

Bárbara - A cidade de Recife tem sido uma força na produção do cinema desde o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, quando comecei a estudar jornalismo e experimentar o campo das imagens entre os meios de comunicação, as artes e o Estado. Se por um lado o governo de Pernambuco produzia imagens muito poderosas a partir de um imaginário centrado no folclore, transformando, por exemplo, o passista do frevo e o caboclo de lança em símbolos de resistência, por outro lado, no jornalismo os fotógrafos tentavam driblar essa imagem propaganda com uma produção que a contestasse. Mas o cinema e a música estavam no tempo presente, diferente das imagens do Estado e do jornalismo. O manguebeat foi um movimento com vontade de mostrar esse outro Recife.

Comecei a trabalhar na arte com uma vontade de atualizar esses assuntos do momento presente, e sem dúvida herdei essa urgência do jornalismo. Mas eu não tinha interesse em construir imagens de denúncia, tampouco de criar escapes da realidade. A arte e o cinema seriam os lugares em que trabalharíamos com um pouco mais de molejo, o que só se concretizou anos depois, quando encontrei Benjamin. Com isso, outra camada dessa relação entre o documentário e a ficção apareceu. Foi assim que começamos a colaborar: se eu não tinha tanto manejo na construção de narrativa no meu trabalho fotográfico seriado, Benji não tinha o espaço urbano como laboratório na sua prática de ateliê.

O primeiro trabalho que fizemos juntos foi o Edifício Recife [2013], que é uma série de fotografias sobre esculturas que são obrigatoriamente instaladas na frente de prédios residenciais em áreas nobres do Recife. Foi uma lei de 1961 que definiu que o "habite-se" de prédios com mais de mil metros quadrados de área construída só seria liberado se em sua fachada houvesse uma obra de arte tridimensional feita por artista pernambucano, com materiais duráveis e desenho original. A ideia da lei era transformar a cidade num parque de esculturas ao ar livre. De fato, nos quase 100 prédios que fotografamos, as esculturas estavam no limite entre o espaço construído e a rua. Mas durante a pesquisa concluímos que a lei foi sendo alterada para privilegiar as construtoras, que hoje desenvolvem parcerias com arquitetos que têm uma licença para desenhar e executar essas obras de arte. Mais do que isso, percebemos que as esculturas mais recentes são praticamente logomarcas das construtoras. Se uma empreiteira inaugura dez prédios em um ano, ou um tipo de prédio em série, com variações, suas esculturas são produzidas da mesma forma, o que muda eventualmente é o tamanho, a cor ou um detalhe. Quando tentamos acessar esses prédios pela portaria, pela grade, pelos interfones, quando o porteiro consultava o síndico e ele achava estranho, fui entendendo que toda aquela estrutura - a escultura, o prédio, a grade, a cabine - era muito eloquente de um imaginário social.

Benjamin - Com esse trabalho entramos no espaço da imaginação da população do Recife que não frequenta galerias e não consome arte, mas vê a obra de arte como uma coisa da elite porque é o que está na frente do prédio em que apenas brancos moram. Nesse sentido, acho mais interessante trocar "ficção" por "imaginação", porque a ficção é fabular, mas a imaginação revela os desejos das pessoas. Isso também acontece nos filmes, em que apenas nos referimos à ficção porque no campo do cinema a diferença entre documentário e ficção é muito demarcada. Mas prefiro pensar que trabalhamos com a imaginação, com os desejos.

O que é o espaço nos seus retratos e como se constitui a relação entre figura e fundo nessas fotografias?

Bárbara - Esse desejo de análise de como o espaço se inscreve no corpo começou em Brasília Teimosa [2005-2007], em que a praia é lugar para o coletivo. Brasília Teimosa é uma colônia de pescadores que fica no limite do Rio Pina com o mar, no Centro da cidade [de Recife], e é um espaço supervalorizado para construção imobiliária. Desde os anos 1950, esse pedaço de terra é alvo de disputa entre a comunidade e o governo do estado, que na época destruía as palafitas dos pescadores durante o dia apenas para vê-las reconstruídas durante a noite. Como essa era a mesma época em que a cidade de Brasília estava sendo planejada como capital federal, esse lugar ficou conhecido como a "Brasília Teimosa", e até hoje resiste. O que Luiz Inácio Lula da Silva fez em 2004 assim que se tornou presidente da República foi dar acesso à praia àquela área da cidade, visto que as palafitas avançavam até o mar. Uma faixa de 1 km de calçamento abriu caminho para uma praia que virou o lugar onde todas as periferias da cidade se encontram nos finais de semana. Foi a primeira vez que eu senti que existia um espaço que eu queria investigar. O fundo era o azul do céu na praia, porque fiz uma escolha muito consciente de não fotografar o casario atrás das figuras, mantendo os corpos isolados do cenário. Porque o corpo já continha todos os assuntos ali.

Pode existir um desejo de análise e de artificialização desse fundo, mas, de maneira nenhuma, o interesse de anulação. Gosto de estar presente no espaço, mas procuro que ele não dispute com a figura, a fim de que a imagem resultante nos dê margem para reflexão. Em Terremoto Santo [2018], por exemplo, adiamos algumas conclusões: nesse filme nunca construímos um cenário, a artificialidade é levada para a própria natureza. Em Estás vendo coisas [2016], foi a planta baixa da boate onde filmamos que sugeriu a estrutura do roteiro. A gente viu, por exemplo, onde era a entrada, os camorotes, o dancing, o palco, e essas situações foram dando a estrutura do filme. Sempre pensamos no retrato e no que o fundo diz sobre a figura. Isso é sem dúvida uma intenção no nosso trabalho.

Benjamin - A arquitetura influencia o nosso roteiro do começo ao fim. Na verdade, todos os filmes são pensados em função da arquitetura como espaço para a performance. Em Bye Bye Deutschland! [2017] que trata da música Schlager como escape da realidade, a cidade alemã de Münster e seu aspecto "fake" (pois foi completamente reconstruída no pós-guerra para manter seu aspecto original) virou parte fundamental da narrativa.

Como é o processo colaborativo com os envolvidos e como o desejo do outro entra no trabalho de vocês? Poderiam comentar sobre esse processo com grupos evangélicos no filme Terremoto Santo?

Bárbara - Na pesquisa de Terremoto frequentamos uma gravadora de música gospel na zona da Mata de Pernambuco. Nessa circunstância, deixamos claro que não somos do jornal, nem da tevê, mas que estamos fazendo um trabalho de arte, que queremos nos aproximar, entender sua prática e desenvolver algo junto. Como artistas que buscam visibilidade e que nunca tinham gravado um videoclipe, os jovens cantores que conhecemos ficaram instigados a participar. As pessoas com quem buscamos colaborar estão com vontade de trabalhar em linguagem, de experimentar. Nosso interesse é conhecer a prática do "outro", entendendo que todos esses outros são artistas, e é por isso que trabalhamos em colaboração. Não é um "outro" distante do universo da criação artística. Eles fazem isso todo dia para ganhar dinheiro. É uma geração que trabalha com o espetáculo. Em Terremoto Santo, queríamos fazer um filme que mostrasse a ideia da fé por uma perspectiva menos ligada à religião do que ao próprio "fazer cinema". Se é emocionante ver a fé dos personagens que cantam a existência de Deus, mais complexo é perceber que essa crença está diretamente ligada a um desejo de "subir na vida": "Se eu gravar esse disco, a minha vida vai melhorar, porque é o que Deus quer." Fé e crença são a própria construção. O crer e o fazer crer são chaves em Terremoto Santo. É por isso que a câmera de Pedro [Sotero] treme. Queremos muito mostrar que aquilo é, antes de tudo, uma criação do cinema como linguagem. Se aquelas pessoas cantam aquelas músicas, têm aquela fé e fazem o que fazem, acomodamos esses desejos no filme porque isso é exatamente o que também desejamos.

Como vocês percebem esse fenômeno de ascensão de igrejas evangélicas no Brasil, às quais são atribuídos valores conservadores? Como pensar o trabalho de vocês não só na documentação, mas como uma disputa e um reequilibrar entre forças de um imaginário na arte?

Bárbara - Não é que os evangélicos sejam a parte mais conservadora do País, mas essa camada reflete claramente o conservadorismo na nossa sociedade. Quando alguém como Henrique Vieira, pastor de uma igreja progressista militante [Igreja Batista do Caminho], vê o filme, ele claramente se distingue como evangélico daqueles que estão ali, e ressalta que existem muitas subjetividades dentro desse guarda-chuva do que é "ser evangélico". E é muito interessante que ele insista nessa explicação. O discurso dele é o de que sim, há um fundamentalismo que cresce assustadoramente, mas ao mesmo tempo não podemos nos esquecer de que essa sensação é criada por uma espécie de monopólio da narrativa de uma parte dos evangélicos que tem muito poder midiático. Ele diz, por exemplo, que uma igreja como a Igreja Universal do Reino de Deus, dona da TV Record, cria uma determinada imagem do evangélico que outros evangélicos progressistas há muito tempo não são capazes de combater. Temos que ser capazes de criar um espaço de compreensão de outras práticas evangélicas para poder resistir. Muita gente pergunta se Terremoto é um filme-propaganda ou um filme-deboche. Talvez pessoas que se sentem ameaçadas pelo crescimento da igreja, ou que têm uma distância muito grande desse universo, prefeririam que estivéssemos fazendo uma denúncia, enquanto o que fazemos é nos aproximar para ver onde o diálogo é possível.

Benjamin - O mundo está ficando cada vez mais binário. A pessoa que pergunta "Como você faz um filme assim, de propaganda?" mostra um pensamento tendencioso e conservador. É muito complicado e complexo, mas, durante o processo de desenvolvimento do filme, nem passou pela minha cabeça que estaríamos fazendo algo para incomodar.

Bárbara - É como se o evangélico não pudesse ser retratado, no campo da arte e do cinema, de outra forma que não como inimigo. Em sua estreia, metade do público vaiou o filme. Por outro lado, não mostramos Terremoto em igrejas; a obra não é de forma alguma liberada para ser usada pela igreja, não é um filme-propaganda. Tivemos medo de que isso pudesse acontecer. É um filme para ser exibido no circuito da arte e do cinema que, por sua vez, tem preconceito com os evangélicos. No filme Estás Vendo Coisas, ninguém critica as letras do brega por serem machistas porque o brega é fetiche. Aquele corpo visto dentro daquele hedonismo tem valor para a elite da arte. Já o evangélico visto poderoso não tem.

Benjamin - O cinema tem o poder de abrir um espaço no mundo do imaginário - ou do imaginário-documentário - que faz você enxergar os seus próprios preconceitos. Isso é muito interessante.

Bárbara - Pensando nesse "reequilibrar forças", acho bem interessante que esse equilíbrio só se completa quando o espectador participa. Fazemos os filmes como se quiséssemos levar as pessoas a experimentar o que experimentamos nesses encontros. Leva um tempo para as pessoas acomodarem esses sentimentos de preconceito, medo e julgamentos que temos por questões de classe. Preferimos que as coisas sejam mantidas complexas no filme, e por isso ele é colaborativo. Se a gente cruzar essa linha do que queremos falar e como falar, faríamos um filme que teria uma única direção. O processo só existe nessa partilha: o que vem tem que ser mantido do mesmo jeito que vem, senão o equilíbrio, ou reequilíbrio, não acontece, porque a gente daria apenas o nosso ponto de vista. Não queremos dizer uma coisa que o personagem não saiba que estamos dizendo, ou que ele não diria. Esse jogo não nos interessa porque queremos existir diante desse outro sem disfarces. Entramos, saímos e carregamos isso até o final da edição. Como poderíamos mostrar uma coisa que sabemos que a outra pessoa não quer? Muitas vezes deixamos no corte coisas que a gente não diria. É esse o trabalho.

Considerando que ali é uma zona de antigos engenhos onde pessoas negras eram escravizadas, como vocês veem a relação dessas igrejas evangélicas com a ancestralidade africana local?

Bárbara - O que foi valioso nesse filme é que não precisamos dizer que estávamos indo para essa região rural da Zona da Mata, onde existiam os quilombos e onde aconteceu uma violência epistemológica de dominação católica, que virou Igreja Evangélica da Assembleia Pentecostal. Porque acreditamos que isso está lá, nos personagens, no jeito como eles se vestem, no ambiente em que o filme se dá, nos engenhos na Zona da Mata. Essa geração que quer ganhar a vida com a própria voz e a própria imagem vai para a igreja porque esse é um lugar de encontro e de possibilidade de melhoria de vida. Os próprios fiéis que praticavam umbanda, candomblé, entram na igreja e querem se livrar de um passado de pobreza. Então, não basta dizermos que é uma loucura que a igreja evangélica queira acabar com esse sentido da ancestralidade africana e indígena. Porque essas pessoas querem romper com a ideia de que foram oprimidas, exterminadas, escravizadas para serem donas de si mesmas. Buscam a igreja para se transformar, para subir na vida, pra serem empresários de seus próprios negócios.

Agora, se transportamos isso para um problema político no sentido macro, é muito diferente e complicado. Mas temos que analisar e nos questionar em cada contexto. Quem é que está dizendo que é uma pena que a igreja evangélica queira acabar com os terreiros? Existe um discurso da elite de esquerda pela preservação das tradições, mas é muito autoritário querermos ensinar para o outro o que o outro tem que fazer. Todos os nossos trabalhos são perspectivas de realidades muito específicas. Para nós, é muito importante que as experiências, sejam individuais ou coletivas, sejam contextualizadas e especificadas - seja uma experiência daquele grupo, naquele lugar. As pessoas que assistem aos trabalhos talvez possam relacionar a experiência de um lugar específico com outras realidades parecidas. Estamos tentando contar essas histórias que não estão nesse discurso mais hegemônico. Nossa grande vontade é entender alguns universos para refletir sobre como essas outras subjetividades existem dentro desse cenário político devastador, que polariza e que coloca tudo num mesmo saco. O que queremos fazer é mostrar que a realidade é mais complexa.

Benjamin - E quando fomos para as igrejas evangélicas, vimos muitos rituais claramente influenciados por experiências das religiões de matriz africana, no sentido espiritual. Tudo está lá, mas traduzido para uma outra liturgia. Quando dizem que a igreja evangélica quer acabar com as religiões de matriz africana, me pergunto: mas qual denominação de igreja evangélica? O filme pode abrir essas possibilidades para revelar o assunto de maneira muito mais complexa.

Bárbara - Existe um o discurso da tradição como algo a ser preservado. Mas quando buscamos fotografar o frevo, no filme Faz que vai [2015], encontramos quatro bailarinos queer que transformam o frevo em uma outra coisa. No Terremoto, tudo fica mais grave porque se trata de religião, mas continuamos pensando na transformação, como as pessoas entram e saem destes papéis. Ali vejo as tradições afro-brasileiras se mantendo de alguma forma pela igreja evangélica. Temos que entender quem é que está querendo disputar o quê. É super problemático e violento o desejo de apagamento desse passado por parte dessa nova igreja, mas não podemos esquecer que a igreja é um negócio, uma estrutura e um projeto político superpoderosos. Precisamos prestar atenção em como entendemos isso no sentido do discurso macro, alinhado com a ideia de um avanço neoliberal em crescimento no País. E pensar por que se a gente fizesse um filme sobre religião afro-brasileira, o filme seria mais aceito.

Benjamin - Muitas vezes pessoas perguntam: "Mas onde você está se posicionando?". Ou dizem: “Não entendo a posição política de vocês". Nossa posição política é uma suspensão de julgamentos para se aproximar e encontrar possibilidades. Não me imagino fazendo um filme junto com outras pessoas e não tratá-las com respeito. Isso é em si uma posição política.

Como vocês veem a relação entre o hedonismo e a ostentação existentes no "corpo popular brasileiro" e a precariedade econômica e infraestrutural na qual a população vive?

Bárbara - Olhamos para a produção cultural de uma outra classe social como uma manifestação econômica, e talvez por isso entendemos o precário no sentido da economia. Essa glamorização do corpo do povo nas artes é um grande problema, e tentamos desarrumar a lógica desse desejo do outro precarizado. Queremos entender, de igual para igual, como em condições precárias as pessoas são capazes de fazer coisas sofisticadíssimas. Como esse "precário", ou esse precariado, é na verdade nossa alternativa de futuro. Como só existe futuro nesse precário porque é a força de sobrevivência, a força de superação. Num certo sentido, a própria ostentação presente nos nossos trabalhos fotográficos mais recentes, em que o dinheiro de papel falso é rasgado e jogado no ar, é manifestação desse precário. Pensamos nisso o tempo todo porque as imagens que construímos talvez sejam um documento, sejam uma elaboração ficcional da realidade, e pela criação em filme viram fatos. Trazemos o que aquele corpo quer ostentar para o espaço para pensarmos o que a ostentação, na condição de manifesto, significa. Na verdade, esse barulho, esse ruído é onde está a resistência, é onde há possibilidade de superação dessa situação mais estagnada e polarizada entre os que têm e os que não têm. 

Considerando que o controle social hoje não se dá apenas por limites espaciais mas também pelo monitoramento e pelo consumo por meio do aparato midiático e imagético, como fica a experiência do espaço sob o efeito dessas imagens? Qual seria a força do espaço físico nesse contexto?

Bárbara - Agora estamos fazendo uma pesquisa com grupos de dança de um gênero de música chamado pagode baiano ou quebradeira, na Bahia; e no Recife isso ganhou o nome de swingueira. São pessoas de vinte e poucos anos que se encontram de duas a três vezes na semana em quadras esportivas na periferia do Recife para dançar. O que tem na quadra que faz essas pessoas pegarem dois, três ou quatro ônibus para ensaiar? Para saírem de tão longe, não necessariamente para algum lugar onde ganharão um diploma, onde entrarão numa empresa e ganharão dinheiro? Ao passo que existe no celular a possibilidade de se filmar dançando, publicar, usar o digital como plataforma de visibilidade, de compartilhamento de experiências, de coletividade; nas quadras de swingueira tudo é experimentado no espaço físico real, como uma necessidade de construção de identidade. O que vemos nos grupos de swingueira, majoritariamente formados por gays e trans, são pessoas descobrindo sua própria identidade de gênero, de sexualidade, de desejo - e isso se dá na quadra. O espaço físico é um espaço seguro onde eles podem estar juntos dançando e experimentando. É muito precioso estar presente no espaço ali. A experiência coletiva in loco é necessária para entender a sua própria existência. Da aula de capoeira à igreja evangélica, as pessoas precisam se encontrar nesses espaços para poderem continuar existindo. É na igreja, na quadra, na praça, no bar onde as coisas acontecem. Essa partilha coletiva é fundamental, e o que a vemos na rede só existe por causa desses espaços. A força que alcança essa outra ponta da tecnologia e que conseguimos visualizar fazendo filmes, na verdade está acontecendo no corpo a corpo nesses espaços. Não tem como construir um futuro outro se não entendermos o que esses espaços significam para as pessoas agora.

KELLER EASTERLING

09/11/2018 - Rio de Janeiro - Esta entrevista foi originalmente publicada no livro 8 Reações para o Depois (Ed. Riobooks, 2019).

Keller Easterling (EUA) é arquiteta, escritora, e professora na Universidade Yale. Ela investiga a infraestrutura global como um meio de política e desenvolve o conceito de forma ativa na arquitetura, colocando ênfase no jogo de relações onde o objeto está inserido. É autora, entre outros livros, de Enduring Innocence: Global Architecture and Its Political Masquerades(2005), The Action is the Form (2012) and Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space (2014).

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

O que você entende por “reatividade” na arquitetura, e como você a estimula em sua prática e em suas aulas de projeto?

Keller Easterling - Em nosso trabalho de design, estamos tentando ensaiar com os alunos não apenas como fazer a forma do objeto, coisas com figuras e contornos, mas também como criar uma forma ativa. A forma ativa poderia ser um protocolo que se desenvolve ao longo do tempo, mas com frequência é um modo de organizar a interação entre potenciais de peças urbanas. Sempre penso que, na escola de Arquitetura, aprendemos a desenhar prédios e objetos que são obras-primas. Se fosse a escola de Teatro, seria como ter aulas de grandes solilóquios. Mas não temos a oportunidade de ensaiar a sua reatividade aos mercados e à política, como numa aula de improvisação. Esses órgãos diferentes do design, essas formas ativas e protocolos de interação, oferecem uma dimensão temporal que nos permite reagir e permanecer em jogo quando fomos superados por uma manobra política. É um modo de estender nosso poder além do objeto, para algo que pode ter mais capacidade de reagir a condições e a políticas em transformação.

Você pode explicar um pouco mais sobre essa dimensão temporal do design?

Keller Easterling - Se você olhasse para as pranchas expostas na parede durante uma banca de projetos, veria vários detalhes arquitetônicos, prédios, protocolos urbanos. Alguns desses protocolos urbanos podem estar organizados como linhas do tempo e cenários possíveis para a construção. Por exemplo, parte disso poderia ser uma interdependência entre os componentes, dizendo: “esta forma de investimento estará conectada com este tráfego”, ou “haverá uma interação entre o sistema de banda larga, as estradas, e a preservação das florestas”. Todas essas coisas fazem parte dos pesos e contrapesos da interação. Com frequência, como arquitetos, vamos para algum lugar, fazemos uma planta, lavamos as mãos e dizemos: “ok, concluímos um objeto perfeito”, que nunca é executado porque as pessoas por algum motivo nunca são puras o suficiente para reconhecer a “genialidade” do arquiteto. Em vez disso, como seria se pensássemos o projeto por meio de interdependências ou de reações em cadeia no urbanismo? De maneira realmente explícita, não no plano das vagas esperanças ou dos sonhos, mas de protocolos flexíveis superexplícitos que podem ser alterados quando necessário. Não apenas uma forma objeto, mas um protocolo de crescimento que reconheça que tudo tem consequências espaciais.

Qual a principal diferença entre a forma objeto e a forma ativa? Quando é possível fundi-las, ou seja, o que faz de um objeto uma forma ativa?

Keller Easterling - Como arquitetos, somos realmente bons em fazer formas objeto, e devemos ser. Aprendemos a projetar com geometria, figura, e contorno. Mas, sem abrir mão dessas ferramentas fundamentais, acho que nossos poderes seriam ampliados se conseguíssemos definir o sítio de outras maneiras. Com frequência, em palestras, mostro uma imagem de um subúrbio repetitivo ou de um campo infinito de arranha-céus. Essas organizações são feitas com multiplicadores, com interruptores, com detalhes, e com regras que são como fórmulas. Você pode projetar uma casa ou um novo arranha-céu, e tudo bem. É uma escolha artística perfeitamente razoável. Porém, para realmente ter impacto, seria muito mais poderoso se você projetasse outro multiplicador que funcionasse como um germe e usasse a paisagem para se tornar contagioso, para pegar carona nessa paisagem em multiplicação. Eu chamaria isso de uma forma ativa. É claro que se trataria também de uma forma objeto, uma forma objeto que foi posicionada como uma forma ativa. Pode ser um detalhe que se replica, uma relação com o transporte que diz: “Não precisamos mais de garagens em dezessete mil casas no subúrbio.” É algo que pode ter um efeito populacional, que pode transferir potenciais num campo de efeitos cumulativos.

Estaria a forma ativa relacionada à noção de agenciamento em arquitetura?

Keller Easterling - Sim. Somos formados para uma profissão que cobra uma taxa de serviço pelo relacionamento com os clientes, e isto está se tornando relativamente insustentável. Estou tentando dizer que nossos poderes, nosso pensamento correlativo, nosso conhecimento, poderiam ter mais autoridade nas decisões globais, na governança global. A cultura dá autoridade ao direito e à econometria, mas não dá muita autoridade à prática espacial, talvez porque tenhamos nos colocado nesse lugar do escritório que fica esperando um cliente nos dar o que fazer. Estou sugerindo que nossas habilidades deveriam ter outro tipo de autoridade e agência. Existem vários tipos de outras discussões sobre agenciamento, mas minha prática tem a ver com o entendimento de que, como designers, não podemos simplesmente desenhar um objeto. Precisamos também ser capazes de desenhar o modo como ele viaja pela cultura, precisamos projetar seu advento, sua introdução na cultura. E também desenhar sua história. Do contrário, nem adianta tentar. As pessoas que são politicamente poderosas sabem como operar essa tela dividida, elas produzem as mudanças junto com a sua própria interpretação. Por isso precisamos ter estômago para também sermos capazes de manipular a narrativa. É um pouco o que eu estava tentando discutir no último capítulo de Extrastatecraft, aqueles truques e técnicas políticas que acompanham a mudança — aquilo que na sinuca chamamos de “dar efeito na bola”.

Quais são as principais fricções e problemas sociais quando espaços de extrastatecraft [construções extra-Estados], como enclaves e zonas livres, encontram o território doméstico existente?

Keller Easterling - Essas zonas livres são lugares em que as leis domésticas do país anfitrião são eliminadas. Esse é o acordo especial. Você tem um conjunto próprio de leis, que com frequência elimina a necessidade de seguir as regulamentações trabalhistas ou ambientais do local. Há também a alfândega expressa, a mão de obra barata, etc. Se o seu país participa de um acordo global para proteger o meio ambiente, ou o trabalhador, todas essas regras são anuladas e postas de lado dentro da zona. E o que é mais complicado é que fica muito difícil para o país anfitrião negar a possibilidade de empregos que vêm daquela zona livre. Se o seu país tem 40% de desemprego, o Banco Mundial, o FMI [Fundo Monetário Internacional], e os consultores dizem: “Veja só, você precisa oferecer aquilo a que as corporações globais e os investimentos estrangeiros diretos estão acostumados a ganhar. Você precisa dar a mesma coisa que eles recebem em Singapura, a mesma coisa que eles ganham em todos esses outros enclaves.” É uma decisão superdelicada para os líderes do país anfitrião.

Uma das coisas pelas quais nutri esperanças é que, em vez de criar esses enclaves “extraurbanos”, os líderes desses países dissessem: “Certo, vamos fazer alguns acordos, mas vocês precisam estar localizados em cidades existentes, e o seu investimento estrangeiro estará amarrado, como outra inter-relação, a algo de que precisamos.” Dubai fez isso. Eles disseram: “Ok, se você quer investir em petróleo e gás no nosso país. Mas você vai precisar fazer um investimento que contrabalance isso, você precisará investir em algo de que precisamos: dessalinização, fazendas de peixes, produção de alumínio etc.” Acho que os líderes do país anfitrião poderiam barganhar melhor os seus ativos. “Tudo bem você querer acesso à nossa mão de obra barata, aos nossos milhões, bilhões de assinaturas de celulares, mas você precisa vir aqui e investir na nossa cidade, não pedir para que a ‘extraurbanizemos’.” Pode até ser mais barato, se você tiver que amarrar seu investimento a algo como mobilidade, você pode facilitar o transporte dos trabalhadores para a empresa. Sabemos, como urbanistas, que quando você coloca as coisas juntas num ambiente urbano, todo tipo de valor extra é criado, gerando proximidades, acrescentando diversidade, e daí por diante.

Um dos nossos estudos de caso é uma ocupação indígena no meio da cidade do Rio de Janeiro, onde tentaram criar um território autônomo comunitário que, na nossa perspectiva, é um enclave local. Qual poderia ser essa outra perspectiva do enclave, quando ele é criado para proteger uma minoria de um sistema predatório exterior?

Keller Easterling - Isso é muito interessante. Queria conhecer melhor o contexto exato. O enclave de que eu estava falando, modelado pela zona livre, é uma organização que só permite que informações compatíveis penetrem seus domínios. É o que chamei de organização que tem a disposição de um circuito fechado, que só conhece o que já sabe, que se recusa a aceitar qualquer informação externa. Uma das coisas que eu estava tentando mostrar em Extrastatecraft é essa ideia de enclave: formas de enclave, como a zona livre, que podem se estender, tomando territórios cada vez maiores, ainda que sejam limitadas em termos de informações. Elas podem ser uma fortaleza elástica que ironicamente atrai muita informação a fim de permanecer pobre em informações. A zona livre é projetada para proteger a liberdade do livre comércio, ainda que o livre comércio na zona livre seja um comércio manipulado. Não é livre comércio.

No enclave que você está descrevendo, é interessante virar o jogo e dizer que a liberdade dessa cultura indígena está sendo protegida, “suas regras”, estamos apenas seguindo as suas regras. É meio esperto e interessante pensar dessa maneira. Ao mesmo tempo, então, como fazer para que isso que você chamou de um enclave não seja pobre em informações? Como você poderia ter um enclave que não fosse um circuito fechado? Como esse enclave poderia ganhar força ao aceitar informações externas, ao tornar-se mais rico em informações, ao mesmo tempo em que valoriza e protege os direitos dos seus habitantes? Não sei como isso funciona, e, muito francamente, desconfio da própria palavra “liberdade”. Acho que é o modo errado de colocar as coisas, porque você sempre precisa perguntar: “liberdade de quem?”. É a liberdade de uma pessoa às custas da liberdade de outra pessoa? Espero que o enclave que você está descrevendo não promova a liberdade de um às custas da de outro. E penso que, com frequência, cria-se mais informação por meio da interação e do jogo com o seu outro.

Quais poderiam ser as estratégias para se beneficiar da infraestrutura dos enclaves — como condomínios exclusivos ou distritos corporativos —, ou, então, para subtraí-las e subvertê-las em prol de uma esfera urbana comum?

Keller Easterling - Um dos protocolos de subtração em que eu estava trabalhando pretendia ajudar a proteger assentamentos informais. Nesse protocolo, o critério de interação estava relacionado à propriedade. A posição da pessoa era protegida por estar numa dinâmica de interdependência com algo de fora, de forma que ela nunca fosse totalmente desvalorizada, que nunca perdesse sua posição nessa cultura. Sei de muitas pessoas que estão pensando nisso, e creio que há muitas maneiras diferentes de operar nesses casos. Alguns diriam que proteger as pessoas em certos assentamentos informais por meio de um título de propriedade seria a maneira mais rápida de fazer com que sejam compradas e marginalizadas. Então, venho pensando nas interdependências entre propriedades, propriedades que têm compartilhamentos entre si. Sei que isso soa improvável, mas pode ser um jeito simples de garantir que os habitantes sempre mantenham sua participação na cidade.

Também estou trabalhando num protocolo que visa a preservação de florestas diminuindo as estradas. Ele busca um modo de concentrar a construção a fim de proteger paisagens e culturas indígenas em risco em lugares como a Floresta Amazônica, onde estradas que destroem a floresta são tratadas como sinais de “progresso”. Assim, esse tipo de interação aumentaria a banda larga, diminuiria as estradas para preservar as florestas, e também atrairia instituições que têm fome de banda larga, como o turismo (desculpem, o ecoturismo é o clichê do momento) ou as universidades. Assim, criar uma relação entre essas coisas começaria a multiplicar os benefícios. E, surpreendentemente, não pensamos nem projetamos em termos relacionais, de interações. Essa é só uma ideia. Existem maneiras incontáveis, infinitas, de organizar uma interação.

 

Falando sobre a ideia de ativismo na arquitetura, quais são, na sua opinião, os hábitos que levam os arquitetos a “marchar na direção do inimigo inexistente e construir as barricadas erradas”, como você disse? Você pode falar mais sobre quais seriam as vantagens de trocar a “resistência” pelo “dissenso”?

Keller Easterling - Bem, as técnicas de que eu estava falando no final de Extrastatecraft eram formas de apoio à resistência. Marchamos nas ruas, sempre marcharemos. Sempre haverá um momento em que precisaremos dizer não. Resistir é importante, mas é também importante vencê-los em seu próprio jogo. O que eu buscava era expandir um repertório do ativismo, para que tenhamos muitas outras técnicas que possam amaciar o terreno para que nossa resistência tenha sucesso. As forças com que estamos lidando, seja Trump, seja Bolsonaro, são pessoas boas num certo tipo de artimanha. É útil ver como eles operam. Eles sabem muito bem como manipular as mentiras. Sabem bem que contar uma só mentira não funciona, mas que contar várias mentiras começa a funcionar extremamente bem. Se você contar só uma mentira, vai ser pego, mas muitas mentiras criam uma superfície escorregadia. Assim, apenas ser direto, apenas estar certo, apenas ser correto e ser justo, é fraco demais neste contexto. Tudo isso é muito fraco, simplesmente não funciona contra valentões, contra gurus totalitários, e daí por diante. É preciso ter um modo de se contrapor a eles. Sim, você pode ir para a barricada, mas você também tenta rastrear o que acontece sorrateiramente pelas suas costas. Acho que pessoas diferentes têm temperamentos diferentes. Eu sou melhor nessas coisas sorrateiras; então, é isso o que estou tentando oferecer para driblar essas pessoas que só querem vencer, e que vencerão a qualquer custo. Temos que descobrir maneiras de causar transtornos, de comer pelas beiradas, de criar nossos próprios disfarces, de desarmar a retórica dessas vozes autoritárias, de enganá-las. Não há escolha.

Qual o poder das ficções, dos rumores e das “contramascaradas” políticas enquanto ferramentas para a arquitetura? O que a arquitetura deveria aprender com a dramaturgia para expandir seu repertório de ativismo?

Keller Easterling - Minha primeira formação foi no teatro. No teatro, você tem as suas falas, mas o que você diz não é necessariamente o que você faz. A fala pode ser “eu te amo”, mas você está esfaqueando o seu marido. Ou está dizendo “eu te amo”, e o que você está representando é “eu quero que você vá embora”. Então, para os atores, é muito óbvio que a informação seja transmitida pela ação. Existe aquilo que você está dizendo e existe aquilo que você está fazendo. Sinto que, no fim das contas, é justamente isso o que estou tentando acrescentar ao repertório da arquitetura. Perceber a diferença entre fazer um objeto e os potenciais ativos desenvolvidos entre objetos. A química que é ativada entre objetos, aquilo que os objetos estão fazendo, não simplesmente o que eles dizem ou aparentam, mas como de fato atuam. Logo, perceber essa tela, dividida entre aquilo que os objetos estão dizendo e aquilo que estão fazendo, é para mim hoje uma capacidade crucial a ser desenvolvida pelos arquitetos. Você não apenas projeta o objeto e suas atividades, mas também projeta a maneira como ele percorre a cultura, por que ele se torna contagioso, e daí por diante.

Você posicionaria a arquitetura como uma espécie de máscara para uma narrativa?

Keller Easterling - Sim, talvez seja como uma máscara. E será que somos capazes de produzi-la? Com frequência somos polarizados pela retórica, mas não, efetivamente, pelo conteúdo da política. Há muita sobreposição entre o que as pessoas realmente querem. Entre políticas de esquerda ou direita, me parece fácil demais enganar as pessoas, o que talvez indique que precisamos ser um pouco impuros.

SILVIA FEDERICI

18/10/2018 - Rio de Janeiro - Esta entrevista foi originalmente publicada no livro 8 Reações para o Depois (Ed. Riobooks, 2019).

Silvia Federici (Itália/EUA) é escritora, ativista feminista, pesquisadora e professora emérita da Hofstra University em Nova Iorque. Ela vem da tradição marxista de autonomia feminista radical. Publicou, entre outros livros, Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo, e acumulação primitiva (2004), e A revolução no Ponto Zero: trabalho doméstico, reprodução, e luta feminista (2012).

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Qual a principal diferença entre as noções de esfera pública e dos comuns? E como os comuns organizaram historicamente o uso da terra?

Silvia Federici - A esfera pública ainda é controlada pelo Estado. Conseguir ocupar, usar o "espaço público", é uma luta contínua, especialmente intensa hoje, porque o espaço público está cada vez mais privatizado, mais dedicado a empreendimentos comerciais, e submetido a condições restritas de acesso. Não existe um modelo único de uso comunitário da terra — rastrear todas as formas distintas de uso comunitário seria uma tarefa difícil, impossível no espaço limitado de que disponho.

Na Europa pré-capitalista, quando os comuns eram dados pelos senhores feudais à aldeia, as pessoas organizavam coletivamente, em assembleias camponesas, o que plantar, quando colher. A assembleia ainda é o local de decisão nos regimes comunitários da América Latina, os quais continuam a basear-se no trabalho comunitário, atribuído aos membros da comunidade pela assembleia. O elemento comum é que a terra não pode ser vendida.

Ainda hoje, em muitas aldeias e cidades italianas você pode ver os tanques de pedra em que as mulheres costumavam lavar roupa. A piazza (praça) onipresente é também um produto arquitetônico do comunitarismo medieval. A piazza na Itália e em outras cidades e aldeias europeias era o mercado, e também o centro da comunidade, o local onde notícias e opiniões eram produzidas e circuladas.

Quais são os aspectos de reciprocidade entre corpo, espaço, e os comuns dentro de comunidades de resistência?

Silvia Federici - Como dizem as mulheres na América do Sul, meu corpo é meu território, querendo dizer que existe uma continuidade em muitos níveis entre nosso corpo e a terra, as águas, as florestas. Aquilo que colocamos na terra afeta o corpo e vice-versa; a defesa do corpo é o primeiro passo para a defesa da terra. Só coletivamente podemos cuidar de nossos corpos e de nossas vidas, do mesmo modo como a defesa da terra é uma luta coletiva. A terra, como escreveu Marx nos Manuscritos econômicos e filosóficos, é nosso corpo inorgânico, não podemos viver separados dela. Como nos disse Vandana Shiva, surgiu na década de 1970 na Índia um movimento, o Movimento Chipko, formado por mulheres que colocam o corpo na linha de frente, literalmente abraçando as árvores para defendê-las dos madeireiros. Em anos mais recentes, no sul da França, mulheres e homens enterraram-se a fim de deter as máquinas ou foram morar em árvores destinadas ao corte, quando um louco projeto especulativo levou ao desmatamento de uma das mais antigas florestas da Europa, a floresta de Sivens, nos arredores de Toulouse. E formas similares de “defesa por meio do corpo” foram organizadas em outras zones à défendre [zonas a defender] (ZAD) na França.

 

Como as mulheres são afetadas pela privatização dos comuns no contexto do capitalismo global?

Silvia Federici - A privatização dos comuns afeta a vida das mulheres acima de tudo, porque, como já observou Vandana Shiva em Staying Alive [Permanecer viva], as mulheres, ainda hoje, dependem mais do que os homens dos comuns da natureza, pois sua relação com rendas monetárias é mais precária. Além disso, uma vez privatizada, a terra é comercializada, e, na maior parte dos casos, destruída pela prospecção de petróleo, pela mineração, e por outros megaprojetos. Nesse caso, também, são as mulheres que mais sofrem com essa destruição, pois são elas as responsáveis pela reprodução de suas famílias, e é um pesadelo quando a terra é contaminada, quando a água fica cheia de produtos químicos, e é mais provável que a comida que colocamos na mesa, em vez de nutrir-nos, ameace nossa saúde. É por isso que hoje as mulheres são as protagonistas da luta contra o extrativismo. A luta contra a privatização é o começo do processo, mas as mulheres em comunidades comunitárias também lutam contra as relações patriarcais que, com frequência, excluem-nas do processo decisório e da participação na assembleia onde as decisões são tomadas coletivamente.

De que maneira você acha que os espaços público e privado se relacionam com a história de caças às bruxas na sociedade? Como a arquitetura ainda perpetuaria espaços de exclusão?

Silvia Federici - A dominância masculina e as relações patriarcais são também expressadas por uma organização masculina do espaço e do tempo. Toda mulher cresceu (ao menos na minha geração) sabendo que, à noite, você não pode sair, porque pode ser estuprada, atacada pelos homens, e, mesmo de dia, nas ruas, nos ônibus, você pode ser submetida a todo tipo de abuso. Porém, há uma continuidade entre a violência e o abuso a que as mulheres estão expostas — embora de maneiras diferentes — no espaço público e a violência a que elas são expostas em casa. O fato de que a dependência das mulheres em relação aos homens foi institucionalizada, isto é, que as mulheres foram institucionalmente destinadas, compelidas pela falta de recursos a ser servas do homens, significou que, de certa maneira, todos os homens podem discipliná-las — todos os homens têm o direito de ameaçá-las com possíveis abusos, o que é uma forma de disciplina, que deixa você bastante atenta aos lugares e aos momentos em que anda nas ruas, os lugares aonde vai, quer vá sozinha ou em grupo. À noite, as ruas são espaço masculino. Na década de 1970, as mulheres com frequência organizaram marchas para retomar as ruas, para retomar a noite. A arquitetura perpetua a violência contra as mulheres ao construir os espaços de reprodução como espaços isolados, individuais, como casas separadas, como bairros em que não há ninguém na rua à noite porque os lugares de reprodução coletiva estão longe, e o bairro é apenas uma espécie de dormitório.

 

Qual é o poder da memória coletiva na construção de novos territórios?

Silvia Federici - A memória é extremamente importante. Conhecer a história de um lugar é colocar a nós mesmas e à nossa luta em algo maior do que nós, é recordar a nós mesmas que fazemos parte de uma luta maior de libertação. Ela nos lembra de nossa dívida com aquilo que foi feito por aqueles que vieram antes de nós. Isso cria um laço comum, cria um sujeito coletivo, expressado por exemplo nas canções que os movimentos radicais e populares produziram ao longo do tempo. Lembro, por exemplo, da profunda emoção que eu, como muitos jovens da minha geração no norte da Itália, sentíamos ao ouvir e ao cantar as canções que evocavam a tristeza e a derrota dos soldados italianos durante a Primeira Guerra Mundial, e depois as canções dos anarquistas que exilavam-se da Itália na virada do século, e as “canções de Giuan”, muito especiais para mim, cantadas por Ivan Della Mea, que na década de 1960 evocavam a derrota das esperanças criadas pela luta de libertação guerrilheira e antifascista, e a repressão que veio após o fim da Segunda Guerra Mundial, junto com a colonização da Itália por seus ditos libertadores. A desarticulação das relações sociais e da solidariedade social, o aumento da mobilidade do trabalho, que é ao mesmo tempo produto do desenvolvimento capitalista e resistência a ele, solapam a possibilidade de criar essas memórias coletivas. O neoliberalismo, em particular, com sua constante recriação e realocação de indústrias, com sua individualização do trabalho e das relações sociais, é absolutamente inimigo da formação de um sujeito coletivo e de uma memória coletiva do tipo expressado pelas canções que mencionei.

Quais são as estratégias espaciais de resistência exploradas pelos movimentos radicais de mulheres? Como elas produzem e revolucionam os espaços urbanos e domésticos?

Silvia Federici - Várias vezes as mulheres ocuparam o espaço público, e não apenas temporariamente, para uma manifestação ou para um protesto sentado. Por exemplo, em resposta à “crise da dívida”, à queda dos salários, e ao processo de pauperização causado pela globalização, muitas mulheres foram trabalhar nas ruas, vendendo coisas, comida, tecidos, objetos que fizeram, ajudando-se, cuidando dos filhos umas das outras, enfrentando a polícia juntas… Poder estar juntas no espaço público é um poder, que cria novas formas de conhecimento e de cooperação; é por isso que os governos opõem-se tão fortemente a isso, e, nos últimos anos, ao redor do mundo, tentaram recuperar o espaço, afastar as mulheres dizendo que suas atividades não eram higiênicas, que estragavam a estética da cidade. A tentativa é forçar as mulheres a vender em espaços separados, construídos especificamente para esse fim, todos separados entre si por uma parede. Porém, as mulheres resistiram de várias maneiras. Já mencionei as marchas à noite para retomar a noite, para retomar as ruas. Trabalhadores domésticos migrantes também foram às ruas para romper a invisibilidade de sua situação, com performances teatrais de rua. Para mim, o mais interessante são as novas formas de reprodução coletiva criadas pelas mulheres, como o jardim urbano, e a agricultura urbana em geral, ou os comedores populares (cozinhas populares, coletivas) que existem em muitas cidades da América Latina.

Também gostaria de lembrar aqui as maneiras que as mulheres, diante de governos violentos e ditatoriais, encontraram para organizar-se clandestinamente contra eles, também de maneiras inesperadas e insuspeitadas, como no caso das arpilleras chilenas, que bordavam cenas da tomada das cidades chilenas pelos militares e depois mandavam o pano bordado para o exterior, falando ao mundo sobre os tanques e as torturas que o governo Pinochet usava para derrotar a resistência das pessoas ao golpe.

Qual o poder de conceptualizar a arquitetura como ato feminista? O que a arquitetura deveria aprender do feminismo para expandir o repertório de seu ativismo e das possibilidades de vida das mulheres?

Silvia Federici - O poder das mulheres na conceitualização de novas formas de arquitetura é que elas têm uma longa experiência de sofrimento e de frustração por causa das condições ruins em que vivem e em que trabalham, em seu papel de reprodutoras de suas famílias, e, no capitalismo, de reprodutoras da força de trabalho. A casa é o local de trabalho das mulheres, sua fábrica. Suas condições — quanto espaço, a facilidade de limpeza, a idade do imóvel etc. — determinam quanto trabalho elas têm de fazer. As mulheres são aquelas que, mais do que qualquer outra pessoa na família, são afetadas pela qualidade e pela organização do espaço doméstico. São elas que fazem a maior parte do trabalho para torná-lo habitável, e, no entanto, são elas também as que dispõem da menor parte desse espaço para si. Se há algum espaço extra na casa, vai para quem "ganha o pão”. Ao menos esse é o arranjo tradicional. Mais importante, como elas organizavam a maior parte das atividades necessárias para a reprodução da família, e tinham de prestar atenção às necessidades de todos, elas têm um entendimento melhor do espaço de que precisamos, de como o espaço deveria ser organizado. Os arquitetos agem bem ao ter em mente a reprodução na hora de construir casas e bairros, e podem aprender muito com as maneiras como as mulheres historicamente reimaginaram a casa. Durante as Comunas de Paris, as mulheres criaram as primeiras creches para crianças. Nos mesmos anos, nos EUA, foram criados muitos projetos de casas sem cozinha, com a cozinha sendo reimaginada como espaço coletivo, espaço de socialidade, mais próxima dos comedores populares de hoje em dia

EYAL WEIZMAN

15/05/2018 - Londres - Esta entrevista foi originalmente publicada no livro 8 Reações para o Depois (Ed. Riobooks, 2019).

Eyal Weizman (Israel/Reino Unido) é arquiteto, professor de culturas espaciais e visuais e diretor do Centre for Research Architecture na Goldsmiths University, em Londres, onde dirige a agência de pesquisas Forensic Architecture. Ele publicou, entre outros, The Least of All Possible Evils (2011), Before and After: Documenting the Architecture of Disaster (2015) e Forensic Architecture: Violence at the Threshold of Detectability (2017).

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Qual a relação entre o valor da terra e a violência que ocorre nos espaços urbanos?

Eyal Weizman - Eu diria, antes de tudo, que a valorização da terra pela especulação é em si uma forma de violência, porque o valor da terra opera como maneira de designação racial e classista de áreas. Quando você fala tanto da favela quanto do campo de refugiados, você tem dois direitos que de certo modo estão em contradição: há o direito de voltar dos refugiados, e há o direito de permanecer dos habitantes das comunidades informais. Porém, os dois estão articulados. As pessoas nas favelas com frequência foram expulsas de outros lugares, no campo ou na cidade. Assim, a primeira forma de violência é que elas tenham sido levadas para lá. Então, claro, a polícia opera como protetora do capital e dos privilégios. É isso que a polícia faz. É esse o trabalho da polícia: proteger a propriedade privada, proteger o capital, proteger o funcionamento da cidade capitalista. Seus inimigos são coisas opacas, complexas demais, indeterminadas demais para ela. E o nível de densidade é exatamente aquilo que não está permitindo a penetração fácil da polícia nesses lugares. Assim, a cidade e sua densidade são o problema número um da polícia. Portanto, tanto israelenses quanto palestinos querem destruir o campo de refugiados e construir moradias sociais. Acho também, não tenho muita certeza, que em certos lugares da América Central e do Sul é isso que acontece com as moradias informais: as pessoas são removidas para que, de maneira muito controlável, cada uma seja localizável no espaço e no tempo. E o fato é que a vigilância é muito mais complicada num lugar em que a propriedade não é totalmente fixa, onde uma pessoa pode estar em diversas partes de um bairro. Hoje, a casa é como o smartphone que você tem, você tem um IP, e esse IP é como se fosse o seu endereço na cidade. Mas o mudar-se, o tipo de viver flexível que surge em alguns desses lugares mais informais, é como ter quinze smartphones. Toda vez que você se muda, o ato de vigiar como um todo fica muito mais difícil. É como se parte da violência infligida nos campos de refugiados, e imagino que também nas favelas da cidade, tentasse aumentar o valor da propriedade. Assim, o valor é mantido baixo privando a área de serviços, privando-a de infraestrutura, promovendo a violência. Então você pode dizer: “Ah, mas a segurança pública, mas assim não há condições de higiene, etc.”, para fazer a limpa e o valorizar a a partir disto.

Como a arquitetura e o urbanismo são usados como armas contra os direitos humanos? Você poderia dar exemplos de alguns dos instrumentos construídos que você chama de violência lenta?

Eyal Weizman - A violência lenta é o modo como a arquitetura e a transformação lenta da paisagem configuram-se não como resultado de forças formativas, mas como resultado de uma tentativa de constranger as comunidades, de remover suas redes de comunicação, de sitiá-las, de limitar sua economia. Porém, a violência opera através de múltiplas escalas, e poderia acelerar-se, poderia passar da violência lenta para uma violência rápida, que irrompe, e vice-versa. Os arquitetos de certo modo estão envolvidos tanto na violência lenta quanto na rápida. A violência lenta está no modo como eles projetam o ambiente construído, nos crimes cometidos na prancheta, nos crimes das linhas. Porém, os arquitetos também são empregados nos projetos de bombardeios, de como derrubar um prédio com bombas, por exemplo. É essa a parte de violência rápida, que irrompe.

No Rio, temos muitas cercas por toda parte, como uma tentativa de evitar a violência construindo jaulas.

Eyal Weizman - Os privilégios estão sempre operando, extraindo dinheiro das massas e acumulando-o num lugar, que então precisa ser protegido. Assim, a cerca vem depois que a violência foi infligida aos outros, como resposta à uma contra-violência que viria. Essas pessoas, naturalmente, estão com medo. A sociedade é completamente irrompida pela violência no Rio, não é?

No Rio, temos muitas cercas por toda parte, como uma tentativa de evitar a violência construindo jaulas.

Os privilégios estão sempre operando, extraindo dinheiro das massas e acumulando-o num lugar, que então precisa ser protegido. Assim, a cerca vem depois que a violência foi infligida aos outros, como resposta à uma contra-violência que viria. Essas pessoas, naturalmente, estão com medo. A sociedade é completamente irrompida pela violência no Rio, não é?

Sim. E como são distorcidas as relações de poder entre público e privado quando irrompe um conflito em zonas militarmente ocupadas? Quais táticas militares são criadas por meio do estudo de teorias urbanas?

Eyal Weizman - Primeiro, a palavra “público”, em Israel e na Palestina, sempre se refere ao público judeu-israelense. Os palestinos podem ser tolerados enquanto indivíduos, podem até ter sua propriedade privada, mas tudo o que for público pode ser tirado deles pelo Estado. A analogia com o Brasil é que quaisquer que sejam os espaços do público, eles podem tornar-se espaços do mercado. O mercado invadiria o público.

Algumas das técnicas de combate nas favelas brasileiras vêm de consultores israelenses. E, vice-versa, algumas empresas brasileiras assessoram americanos e israelenses, as pessoas compartilham informações. A densidade do campo de refugiados e da favela permite que as pessoas se desloquem, passem de um espaço a outro, não indo para fora, porque do lado de fora elas estão expostas, os outros podem ficar de tocaia, elas podem ser emboscadas. Assim, elas passam de um cômodo a outro, às vezes subindo e descendo, às vezes podem atravessar cem metros. Isso significa a inversão do público e do privado. Quando o conflito acontece, o lugar que você evita é o espaço público, e o lugar que você transita é o espaço privado. Essencialmente, a guerra anula privado e público, aquela garantia de público e privado que existe em tempos de paz. Se você determina qual é seu domínio público, ou a ideia de que “sua porta é seu castelo”, tudo isso é anulado em emergências de segurança.

Considerando sua indicação recente para o Turner Prize, quais são as vantagens e desvantagens de inserir o trabalho do Forensic Architecture no mundo da arte, onde as fronteiras entre verdade e ficção são nebulosas?

Eyal Weizman - Excelente pergunta. Sempre há riscos em aceitar algo assim. Existem partes do mundo da arte que são engajadas política e intelectualmente. E, no melhor cenário, a esfera da arte e da cultura pode ser um lugar para reflexão e para invenção de novos mundos, para refletir sobre novas sociedades e inventá-las. E, no pior cenário, ela é aquele fenômeno de brilho, raso, superficial. Pensamos muito se aceitaríamos ou não a indicação. Assim, muitos de nossos críticos, pessoas que nos atacam, nos disseram: “Ah, vocês não são na verdade legistas sérios, vocês são artistas”, e aí achamos que não deveríamos aceitar o Turner, porque isso colocaria em risco nosso corpo de indícios e evidências. Depois pensamos que não deveríamos ceder aos críticos. Que, pelo contário, deveríamos insistir que existe valor de verdade, existe um valor indiciário, de evidência, que pode ser obtido por meio do trabalho da estética, da fabricação de artistas, de cineastas, de arquitetos. E que o mundo da arte poderia se tornar um palco, um lugar, uma das tribunas para a encenação da verdade, para a encenação de uma verdade que é impossível de encenar num tribunal. Como somos uma instituição contra-legista, nem sempre somos admitidos no tribunal, porque colocamos o Estado em xeque. A atividade legista consiste em o Estado examinar e processar indivíduos. Nós somos indivíduos examinando os crimes do Estado, então é difícil ir ao tribunal. Precisamos encontrar maneiras alternativas, e a arte é uma delas. 

Considerando a vigilância invisível da era digital, em que consiste, na sua opinião, o poder da arquitetura construída para contrapor-se ao controle?

Eyal Weizman - Eu não disse que ela tinha poder. Acho que havia uma espécie de ilusão de que a profissão da arquitetura poderia oferecer uma alternativa à terra e ao capital trabalhando de maneira diferente. Acho que isso era verdade em certa medida, na era da ideologia, e não acho que seja mais esse o caso. Acho que a arquitetura é o problema, e é por isso que não trabalhamos desse modo, oferecendo moradias baratas para comunidades em estruturas formais. Tivemos de virar a arquitetura completamente do avesso para desenvolver o Forensic Architecture. Há tanta inteligência, tanto talento, tantas possibilidades, vamos canalizar isso em outros tópicos, não em desconstruir construções.

DRAUZIO VARELLA

21/03/2018 - São Paulo - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, relizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.

Drauzio Varella (São Paulo, 1943) é médico cancerologista e escritor. Formoado pela USP, começou a sua carreira trabalhando como médico em presídios em 1989. Foi um dos fundadores do Curso Objetivo e um dos pioneiros em pesquisa do tratamento de AIDS no Brasil. Sempre esteve presente na mídia com programas de Tv e Radio alertando a população sobre a situação da saúde brasileira. Lançou diversos livros, revelando um conhecimento múltiplo, de medicamentos da floresta amazônica, sedentarismo, à situação carcerária brasileira, dentre eles Estação Carandiru (1999).

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Quais os maiores desafios da saúde pública nacional frente ao desenvolvimento urbano das cidades brasileiras?

Drauzio Varella - O Brasil experimentou um processo de urbanização muito rápido e maciço. Lidamos até hoje com as consequências disso. Durante a Segunda Guerra Mundial estávamos com 70 a 80% da população no campo e hoje temos essa relação invertida. Essa urbanização aconteceu sem nenhum planejamento, cidades foram inchando do centro para a periferia. Nos anos 1950 e 1960 em São Paulo havia um grande boom do mercado imobiliário e uma grande migração do Nordeste. As pessoas vinham e conseguiam emprego imediatamente.

Quando fui residente no Hospital das Clínicas, via a consequência da urbanização desenfreada: uma mortalidade infantil altíssima. Em um plantão de doze hora, perdia-se quatro crianças, às vezes mais. Antes da criação do SUS (Sistema Único de Saúde) pela Constituição de 1988, se você não tinha carteira assinada você era considerado um indigente e ninguém tinha obrigação de te dar assistência médica. O SUS foi uma revolução porque levou medicina ao país inteiro. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que ousou oferecer assistência médica gratuita para toda a população. Agora, com esse processo de urbanização é muito difícil atender toda demanda. Temos problemas organizacionais e de gestão adequada. A escala é o maior desafio: como você distribui essa assistência nas cidades? Hoje qualquer pessoa doente tem acesso a algum tipo de assistência, mesmo que espere horas, que demore para marcar consulta. Então conseguimos avanços muito grandes.

Quais reflexos da precariedade habitacional e infraestrutural em favelas e periferias podem ser percebidos no sistema público de saúde?

Drauzio Varella - Gravo muito para televisão por várias periferias de cidades brasileiras. Como você percebe que está chegando numa casa de periferia? Todas as casas de periferias brasileiras são semelhantes, não tem reboco, são feitas com aqueles blocos e as lajes são mistas, sem acabamento. A fiação na rua é um emaranhado de fios que entram e saem das casas, às vezes é perigoso se espreguiçar e ser eletrocutado. São casas espremidas porque o terreno é sempre pequeno e os andares vão subindo. Cada um constrói a casa onde consegue, beiras de córregos que extravasam, beira de morros que deslizam. A dificuldade primeira é o saneamento básico. Como as periferias crescem desordenadamente, sem projeto urbanístico, fica muito difícil levar água e saneamento básico. Porque duplicamos expectativa de vida no século XX? Saneamento básico, vacinas e antibióticos - os três grandes avanços da saúde pública do século. Mas metade da população brasileira não tem acesso ao saneamento básico, justamente a que vive nas periferias. 

Quais são os efeitos da segregação social entre centro e periferia e das longas jornadas de deslocamento entre casa e trabalho para a saúde física e mental da população de baixa renda? Voce acredita que algum programa habitacional já oferecido pelo governo tenha levado isso em consideração?

Drauzio Varella - Houve um tempo em que tínhamos grandes dificuldades de acesso à alimentação adequada no Brasil. Hoje, ao contrário, o problema maior é a obesidade. Na periferia há uma grande quantidade de mulheres e homens obesos. Primeiro porque carboidrato é mais barato que a proteína; segundo porque muitos deles levam uma vida que não dá tempo de fazer exercício: pegam o trem, duas horas pra chegar no trabalho, duas horas e meia pra voltar, chegam nove e meia da noite e dormem. No dia seguinte trabalham cedo, no domingo de folga os homens aproveitam para dormir porque estão cansados e as mulheres faxinam a casa. Essa estrutura é muito insalubre porque não deixa tempo para cuidar da própria saúde. E quando você tem problemas, só tem o fim de semana livre, quando as unidades básicas de saúde estão fechadas. Se você começa a ter um problema mais crônico, como pressão alta, é difícil marcar uma consulta porque durante a semana você não pode por medo de faltar e perder o emprego. Os cuidados com a saúde vão sendo negligenciados e no fim você vai tendo complicações mais graves. Também temos as doenças causadas por falta de saneamento básico: as diarréias infantis, as complicações infecciosas. Então você tem que ter uma organização no sistema de saúde muito complexa para atender os dois tipos de necessidades, das doenças crônicas e das doenças agudas infecciosas e transmissíveis.

Acho que não damos a devida importância à medicina preventiva. Todo mundo fala "prevenir é melhor do que remediar", repetindo essas frases feitas. Mas quando você analisa a estratégia, percebe que não temos política pública no Brasil. Porque primeiro porque eles trocam ministros, secretários de saúde municipais e estaduais toda hora. Cada um tem dezenas, centenas de cargos de confiança. Então você não tem uma continuidade nesse processo. Você troca o ministro da saúde na França, e ele tem meia dúzia ou vinte pessoas que pode mudar, os outros são pessoas que tem uma carreira no serviço público. Nós não temos isso aqui. E uma política de saúde inteligente tem que ser dirigida para a prevenção, é lógico.

A cada tantos habitantes você tem que ter uma unidade básica de saúde, a cada tantos habitantes tem que ter um hospital. Vou te dar um exemplo simples de entender: hospitais com menos de cem leitos são inviáveis porque você não consegue ter um neurocirurgião, não consegue organizar a estrutura básica, não consegue ter um laboratório automatizado. Mais ou menos setenta, oitenta por cento dos hospitais brasileiros não têm cinquenta leitos, percebe? Por que acontece isso? Porque é tudo feito sem planejamento. Tem uma cidadezinha lá e o Prefeito constrói um hospital, põe o nome da mãe dele na fachada e fica famoso pra sempre. O morador da cidade vizinha diz: "lá tem hospital, aqui não tem, nosso Prefeito não leva a sério a saúde". Aí esse prefeito constrói outro e fica aquele monte de hospitais, cada um na sua cidade e nenhum deles com condições de trabalhar eficientemente. Tinha que fazer o que? Quantas cidades são? Cinco, seis, dez? Aí você tem um hospital regional, e o resto são unidades básicas. Se não resolver o problema aqui, leva pra lá. Tem que ser assim, e cada região ter um hospital terciário. Esse regional que vai fazer cateterismo, transplante de fígado etc. Temos dados técnicos para fazer essas coisas dentro de um planejamento, o que falta é continuidade. Ontem o Secretário da Saúde de do Estado São Paulo comentou comigo que enquanto ele foi secretário, nesses quatro anos, trocaram o Ministro da Saúde do Brasil seis vezes. Não há nenhuma possibilidade assim.

Sobre os programas habitacionais que você perguntou, eu não tenho condição de responder porque eu não conheço todos esses programas. Esses programas parecem se limitar a pegar uma área da cidade e nessa área da cidade fazer as casinhas, os prédios e acabou. Como se tendo um lugar para morar, você tivesse a garantia de que a sua vida vai melhorar. Você viaja pelo país de avião e vê aquelas casinhas todas iguais, sem uma praça.

Eu já fiz várias coisas em favelas no Rio de Janeiro. O Rio é mais perigoso porque a favela está colada na cidade, né? As casas de favela por fora são todas iguais, os tijolos, as lajes, os fios... e quando você entra, muitas vezes você se surpreende: lajotas de boa qualidade, as escadinhas todas revestidas, as paredes internas limpas, pintadas, bem cuidadas. Banheiros azulejados, muitas vezes azulejados até o teto que é um desperdício de dinheiro. E aí, varias vezes já me aconteceu de perguntar: escuta, mas por que você não pinta a casa por fora? E eles dizem: eu não moro fora da casa, eu moro dentro.

Todas têm fogão, geladeira, televisor (às vezes maior que o da minha casa), equipamento de som. Todos têm esses cuidados, esses utensílios eletrodomésticos básicos, mais a construção da casa. Quanto custa reborar uma casa dessas? Às vezes eles que fazem a própria casa. Não dá pra depois que você jogou esse reboque você calhar? Quanto custa um saco de cal? Eu acho que é um custo tão baixo, que o problema é mais cultural. É esse mesmo: eu não moro fora, eu moro dentro de casa. A casa pode ficar assim.

Eu escrevi a letra de um espetáculo de dança para a favela da Maré, junto com o Ivaldo Bertazzo. Então fui lá umas vinte ou trinta. A Maré tem vários lugares diferentes, no Morro do Timbau, alguma ONG conseguiu pintar as casas. As ruazinhas são muito estreitas, você tem a impressão de que está em uma daquelas vilas italianas. Já tive discussões sobre esse tipo de intervenção e as pessoas falam: "é lógico, vocês querem que pinte a casa para quem passa não se incomodar com aquilo". E não é! Não me incomoda nada olhar aquilo, até acho esses contrastes bonitos, mas acho que é pra pessoa se sentir valorizada, para as famílias se sentirem valorizadas.

Qual a conexão entre qualidade habitacional e violência urbana? Qual o impacto da falta de oportunidades de trabalho nas periferias sobre o elevado índice de criminalidade nas cidades brasileiras?

Drauzio Varella - Você vai pra periferia é uma quantidade de criança enorme. É um absurdo, quanto mais pobre, mais crianças você vê. Na penitenciaria feminina encontro mulheres de trinta anos com sete, oito filhos. Começa a ter filho com treze, catorze anos, e vão tendo um depois do outro. Eu tenho o caso de uma moça lá, no final do ano passado, que me falou: "Ai, estou tão feliz hoje Dr. Drauzio, nasceu o meu neto no fim de semana." Eu perguntei quantos anos ela tinha e ela falou: "vinte e oito anos". Vinte oito anos e é avó! Tem outra que com quarenta anos tem três bisnetos!

Qualquer uma de vocês também iria vender drogas nessas circunstâncias. Qual é a alternativa? Você tem criança em casa, geladeira vazia, com dificuldade de conseguir coisas básicas, e alguém te diz: “Olha, pega esse pacote aqui e leva ali que você vai ganhar 5 mil reais”. Eu, nessa situação, levaria com toda a facilidade, voltava e ainda pedia para levar outro.

Você tem o primeiro filho com catorze anos, aí pára de estudar porque não dá pra contratar uma babá, né? Já comprometeu seu futuro e o futuro da criança também. Aí tem o segundo com dezessete, depois tem o terceiro com dezoito. Os homens desaparecem completamente. Em casa de periferia, tipicamente você vê uma senhora de cinquenta anos que parece ter oitenta, uma ou duas filhas, e os netos. Ela sustenta a família com a aposentadoria. Bom, qual o futuro de crianças nascidas nessas circunstâncias? A mãe tendo catorze anos querendo ir pra balada a noite. Depois essa mulher vai ficar o dia inteiro fora de casa trabalhando, vai chegar em casa nove, dez horas da noite. E a criança vai ficar aonde? Na rua.

Quando se fala em violência urbana, em números, é uma doença com múltiplos fatores de risco, né? Até uma casa muito colada na outra aumenta o risco de você ter problemas entre as famílias. Mas tem três fatores que são cientificamente demostrados, e tem uma literatura científica consistente a respeito disso. Os três maiores fatores de risco para violência: primeiro, uma infância em que a criança foi abusada ou que não teve carinho; segundo, adolescente criado sem controle, sem limites impostos; e terceiro, convivência com pais violentos. Quando você pega esses três fatores, essa é uma grande realidade de todas as periferias do país e é até estranho como nós tenhamos tão pouca violência no Brasil, era para ter muito mais. Quando você constrói uma periferia da cidade com essas características, a violência explode. Você encontra a violência em todas as camadas sociais, lógico, mas nas camadas mais pobres a violência é uma doença contagiosa, ela cria características epidémicas. É o que nós estamos vivendo agora.

No Brasil, vinte e cinco por cento dos adolescentes entre dezesseis e vinte e cinco anos não trabalha nem estuda. O que fazem esses meninos? Você anda pela periferia à tarde e você vê essa molecada de quinze, dezesseis anos, parada na esquina conversando e fumando maconha. Você pára em uma rodinha dessas para conversar e eles só sabem falar de jeans, de menina, de moto, de óculos escuros, esse é o universo deles. Você tem todas as sementes para a explosão da violência.

Considerando sua experiência no sistema carcerário, existe algum vínculo entre o atual déficit habitacional e a superlotação dos presídios? Como essa superlotação se relaciona com a política de guerra às drogas?

Drauzio Varella: Olha, acho que a superlotação tem a ver com essas características que eu acabei de dizer. Você tem uma massa de jovens que vem de famílias pobres com muitos filhos. Não que eles sejam a causa da violência, mas viram uma massa de manobra para o crime organizado. A causa principal é a falta de perspectiva. Por que que vocês não engravidaram aos 14 anos de idade? Porque vocês tinham uma perspectiva. E outras oportunidades, como ter uma carreira. Várias meninas hoje têm filhos com 30 e tantos anos, quando está batendo o limite da fertilidade, e aí fazem inseminação artificial, oorque elas quiseram se formar, fazer pós-graduação, é o oposto. Essas meninas engravidam sem querer. Aí esse pessoal que é contra aborto fala: “Nenhuma das meninas novas se arrependem de estar grávida”. Uma mulher grávida não é uma mulher normal, não é verdade? É uma mulher inundada por hormônios. Gravidez é uma doença sexualmente transmissível. (risos)

Superlotação de presídios e combate às drogas são diretamente ligados, né? Na penitenciária feminina daqui, de 1200 mulheres 60 ou 70% foram presas por tráfico. Você tem desde a pequena até a grande traficante. Nós tivemos uma aqui como a Maria do Pó, que fugiu. Mas qual é a grande traficante? Porque as mulheres na hierarquia do tráfico são inferiores aos homens? Por causa dessas características sociais da periferia. O tráfico é uma forma de você ter boas condições, criar os filhos direito, dar o que os filhos pedem. E hoje existe um crime organizado que domina as cadeias, então isso é um problema sério: meninas que às vezes estão levando drogas para dentro da cadeia (para o marido ou para o namorado) são condenadas a 4 anos de cadeia. Você pega uma menina que às vezes é ingênua e joga no meio daquele ambiente. Provavelmente sai pior do que entrou, e mais conectada. Porque tem um aspecto que ninguém pensa: uma menina que trafica droga em Itaquera jamais ia se encontrar com uma outra que trafica no Capão Redondo. Na cadeia podem dividir a mesma cela, então você permite que se forme uma organização criminal. E se antes já era difícil conseguir trabalho, imagina depois que você tem uma passagem pela cadeia? Nenhuma aceitação social. Nós não temos programas sérios de reinserção social. O que acontece às vezes é que você trabalhava em uma empresa onde as pessoas te conheciam, sabiam que você é uma pessoa de com caráter, e te aceitam de volta. Isso acontece às vezes. E aí essas meninas se agarram a esse emprego, dão o maior sangue para não perder de jeito nenhum.

Mas a maioria quando sai volta para o tráfico ou volta para pequenos negócios. Compra uma carrocinha para vender milho verde, ou um barzinho, algumas que conseguiram guardar dinheiro. O que é raro porque quando vão presas, o que a polícia não leva, o advogado leva, né? Então elas acabam sempre em uma pobreza dura, difícil. Uma ou outra que foi mais esperta no tráfico consegue guardar dinheiro, então compra casa para a mãe, para o filho, para o sobrinho, dá um jeito para montar um pequeno comércio quando sai. Essas têm condição de tocar a vida, mesmo fora do crime. Mas isso é incomparável com o dinheiro que a droga dá.

Qual a perspectiva dos programas governamentais de habitação serem pensados de maneira integrada aos programas de saúde pública, de modo a estimular tanto o aumento de qualidade de vida nas cidades como o combate à violência?

Drauzio Varella - Eu acho que você dar uma casa para a pessoa morar é muito pouco. Quais são as condições mínimas que você precisa para morar? Você precisa ter uma casa, um espaço de lazer, uma escola próxima para as crianças frequentarem sem ter que se deslocar pela cidade, saneamento básico, unidades de saúde localizadas ali; um Programa de Saúde da Família Brasileira que é elogiado no mundo inteiro. A moradia tem que fazer parte de um projeto urbano como um todo, e não ser o fim. Você precisa ter um mínimo de estrutura pública.

Como a periferia é de São Paulo inchou? As pessoas chegavam, invadiam terrenos e construiam suas casas. Depois que havia um certo número de casas, começam a se organizar para cobrar do governo iluminação, esgoto, água encanada. É tudo ao revés, ao contrário do que deveria ser.

KENARIK BOUJIKIAN

19/03/2018 - Rio de Janeiro - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, realizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.

Kenarik Boujikian (Kessab, Síria, 1959) é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo. Graduada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atuou como voluntária no já extinto presídio Carandiru, foi cofundadora e presidente da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) e conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Participa do Grupo de Estudo e Trabalho Mulheres Encarceradas. Recebeu o 19º Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, da Ordem de Advogados do Brasil de São Paulo, em 2002, Ano da Paz, entre outras premiações.

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Quais são os maiores desafios no sistema Judiciário brasileiro à garantia dos direitos humanos? Quais os limites do Judiciário para defender cidadãos de possíveis arbitrariedades do poder Executivo?

Kenarik Boujikian: O desafio que entendo premente é a necessidade de mudar a cultura dentro do próprio Judiciário. Vemos que uma grande parcela dele não tem clareza de que seu papel é garantir direitos fundamentais, direitos humanos. Dificilmente essa missão será concretizada se o Judiciário não enxergar como sua real função dentro da sociedade democrática.

O Judiciário não tem limites em relação ao Executivo justamente por ser o último poder a decidir qualquer causa. Seu único limite é a Constituição Federal, na qual encontramos as garantias fundamentais. Por exemplo, o limite do orçamento passa pelo crivo do Executivo e Legislativo, mas o Judiciário pode interferir à medida que os outros poderes não atuarem devidamente. Um caso emblemático decidido pelo Judiciário foi sobre a inexistência de creches, o que acontece em muitas cidades. Algumas pessoas argumentam que o judiciário não deve agir sobre essa questão, pois vai interferir no orçamento, uma lei votada anualmente. Então, qual é o limite? Foi decidido que o direito à educação é fundamental. O direito da criança a um desenvolvimento integral está na Constituição.  

Quais situações revelam a cultura do punitivismo no espaço das cidades?

Kenarik Boujikian: O punitivismo não é exclusivo do Judiciário. É uma cultura que perpassa todos os poderes, da criação e aprovação das leis à forma como são executadas, até chegar ao Judiciário. O punitivismo nas cidades reflete o local onde o sistema penal escolhe atuar. E ele atua, significativamente, nas periferias, ainda que os fatos não aconteçam necessariamente nas periferias. O punitivismo encontra as pessoas que estão à margem e daí começa a seleção. O Estado como polícia começa a atuar nessas pessoas, na sequência isso chega ao Ministério Público e, com um processo, vem ao Judiciário. É uma espécie de rede, uma teia. Esse desenho fica refletido, depois, no sistema punitivo, nas condenações e dentro das prisões.

 

O que uma intervenção militar no Rio de Janeiro representa para a democracia do país hoje? Como regular práticas e impactos dessa medida de exceção?

Kenarik Boujikian: Vai ser muito difícil regular algo que não nasceu para ser regulado. A intervenção militar está dentro do macro - o estado de exceção que se instaurou no Brasil desde a deposição da Presidenta Dilma. Começam ali uma série de mudanças de estruturas que vão se adensando para fortificar esse estado de exceção, envolvendo os três poderes. Perdemos vários direitos construídos desde a retirada da presidenta, um retrocesso que ganha corpo a cada dia. A reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) rompe com a conquista histórica de direitos fundamentais. O congelamento do orçamento por vinte anos vai repercutir em todos os direitos. A norma internacional que regulamenta os direitos humanos diz que nunca se pode retroceder nos direitos, pode-se apenas avançar.

A intervenção militar é o estado de exceção se aguçando no limite do uso da força. Poder dos militares significa uso máximo da força. Não é pouco o que eles querem: livre acesso à vida das pessoas, sem estar sujeitos à nenhuma comissão da verdade. Eles já anteveem porque sabem dos arbítrios. Nós vamos colher os corpos. Nós vamos colher a dor. Já estamos colhendo.

Como a seletividade e a arbitrariedade da justiça afetam as relações de poder na sociedade, em especial os cidadãos mais vulneráveis, como aqueles que vivem em zonas de conflito urbanas?

Kenarik Boujikian: Quem expede os mandatos de busca e apreensão coletiva? O Judiciário. E os mandados coletivos só acontecem nas favelas. E a intervenção militar atinge quem? As favelas, onde há um Estado diferente para uma determinada população. Criança sendo revistada? Consigo imaginar isso acontecendo comigo? Direitos humanos pressupõe ser igual ao outro, se colocar no lugar do outro. O estrago está feito. E agora o Supremo Tribunal Federal risca a Constituição Federal, como decidiu na execução imediata da pena com julgamentos em segunda instância, que espero que seja revertida.

A senhora foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo pela libertação de onze presos que já haviam cumprido pena. O que a polêmica demonstra sobre os impasses da justiça no Brasil?

Kenarik Boujikian: No processo constou como onze, mas levantei com a minha equipe e eram quase cinquenta casos. Ficou claro que existem duas visões de mundo diferentes dentro do Judiciário. No julgamento do caso, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um dos conselheiros disse que eu estava sendo julgada pelo meu modo de ver o mundo. Esse caso mostra o pensamento punitivista. O Estado elegeu um inimigo, alguém que pensava diferente, assim como no passado recente, no período da ditadura civil-militar, também havia um inimigo. Hoje, os novos inimigos são determinadas pessoas, tratadas como se não tivessem direitos, dignidade ou valor humano. Se não te vejo como ser humano, faço o que quiser com você, te uso da forma mais conveniente. Seja por você ou para mostrar para a sociedade alguma coisa através da sua ausência de valor. O inimigo está eleito. Os muros estão ali. O muro está claro na intervenção militar no Rio de Janeiro, embora não se veja fisicamente.

Quais lutas tem avançado na garantia de direitos humanos, dentro e fora do Judiciário? Como a sociedade pode fortalecer e proteger suas lutas por direitos em um país onde os ativistas são cada vez mais ameaçados?

Kenarik Boujikian: Não sei se temos avanços. Infelizmente, o Brasil é um dos campeões no número de ativistas assassinados - ativistas rurais, urbanos, em qualquer espaço de atuação. Todos ligados aos direitos fundamentais, especialmente ao direito econômico. Por que morrem tantos indígenas, tantas pessoas ligadas às questões da terra? E agora a morte da Marielle Franco, uma pessoa que realizava o enfrentamento para acompanhar a sequência de violações da intervenção militar, uma voz para controlar e mostrar o perigo que o Brasil está vivendo.

Existe um grupo forte de pessoas que estão na luta e temos um crescimento de pessoas que se insurgem em relação a tudo que aconteceu nos últimos anos. Temos que romper essa barreira, ninguém fará por nós. Cada um dentro dos seus limites, da forma que puder - conversando com familiares, indo nas manifestações. Minha atuação como juíza só pode ser para garantir os direitos fundamentais e militar por direitos humanos. Temos que ir para as ruas - é um bom espaço em que a sociedade pode se encontrar e se manifestar. Na verdade, já temos um rumo que foi marcado em 1988. Estamos vendo a Constituição Federal ser rasgada a cada dia. Mas ainda dá tempo, temos que continuar reagindo, não podemos desanimar.

AILTON KRENAK II

15/03/2018 - Rio de Janeiro - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, relizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.

Ailton Krenak (Minas Gerais, 1953) é uma liderança indígena histórica e da atualidade. Na década de 1980 dedicou-se à articulação do movimento indígena, exercendo um papel crucial nas conquistas dos Direitos Indígenas na Constituinte de 1988. Participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI); da Aliança dos Povos da Floresta e idealizou o Festival de Dança e Cultura Indígena na Serra do Cipó (MG). [Entrevista realizada por Gabriel Kozlowski/ Fotografia por Ana Altberg/ Video Rogerio Souza, Indiana Produções]

ALTBERG, Ana; MENEGUETTI, Mariana; KOZLOWSKI, Gabriel. 8 Reações para o Depois/ 8 Reactions for Afterwards.

Quais marcas podem ser percebidas em ocupações indígenas atravessadas por fronteiras nacionais, como no caso dos povos Tukanos; dos Macuxi; dos Yanomami? Como essa convenção política, esse desenho no papel, se materializa no espaço físico?

Ailton Krenak - A configuração do desenho de um Estado Nacional, limitando fronteira com os vizinhos - também Estados nacionais - talvez seja a mais compartilhada, a mais comum. Logo que chegam na escola, as crianças já vêem um desenho do território do seu país nas aulas de geografia ou história. No caso do Brasil é um desenho bem expressivo porque é um país de tamanho continental, com uma fronteira inteira para o Atlântico. As fronteiras interiores são duras e bem marcadas, mas são fronteiras fluidas para povos como os Ticuna que vivem no Rio Solimões, entre o Brasil e a Colômbia; para os Tukanos, lá no alto do Rio Negro, que estão no Brasil, na Colômbia e também nas divisas com a Venezuela; os Yanomami, entrando pela Venezuela; os Macuxi no Suriname... Temos povos transfronteiriços que vivem uma relação muito fluida com essas fronteiras: atravessam de um lado para outro; se casam; as famílias tem roça do lado de lá e vivem do lado de cá; caçam; fazem suas incursões marcadas por uma agenda que é cultural, mas que não tem nada a ver com essa ideia de Brasil. A Convenção 169 assegura que populações tribais que vivem em fronteiras tanham livre trânsito, protegendo a autonomia e fluidez desses povos que não têm passaportes, que não são "documentados". Acho esse princípio muito criativo.

Temos que pensar cada vez mais em instrumentos internacionais que asseguram a fluidez entre os povos, inclusive para a gente ir devagarinho mudando um padrão arcaico - dos povos europeus que vieram colonizar a América com esse cacoete de delimitar fronteiras, tão duras que não podemos transpô-las. Acho que isso é uma memória dos tempos dos castelos, das guerras, de povos acuados pela peste. Fronteira é uma coisa medieval. Se a gente está querendo um mundo de paz, temos que pensar um mundo onde as fronteiras não sejam bloqueios - já que provavelmente nunca vamos eliminá-las do nosso horizonte. Fronteiras que sejam mais indicações de transições, de gradientes na paisagem que precisam e possam ser transpostas.

No caso da cultura dos povos originários aqui das Américas e para os povos indígenas do Brasil, a ideia de fronteira importa. Por exemplo,a demarcação das terras indígenas, é uma violência. Apesar de nós reclamarmos e demandarmos do Estado brasileiro a demarcação das terras indígenas, é como se fosse um mal menor. Já que a gente vive numa cultura onde fronteira é marca distintiva de domínio, o povo indígena reivindica uma fronteira mais para leitura externa do que uma fronteira para leitura interna.

Como se dá a articulação política para redução dos direitos indígenas hoje no Brasil? Que tipo de limite as reservas indígenas, se respeitadas, apresentariam para o desenvolvimento econômico baseado no extrativismo primário? Quais são os exemplos mais recentes desse embate?

Ailton Krenak: Representa uma ameaça constante, um risco iminente de desastre. Se a gente pensar no que aconteceu com Belo Monte - quando para a estratégia do Brasil de se tornar autosuficiente na produção de energia elétrica, decidiu-se barrar o Rio Xingu e construir grandes hidrelétricas. Só com o anúncio disso eles desestabilizaram a vida daquelas comunidades ribeirinhas, daqueles povos do Xingu de uma maneira tão agravante que eles passaram anos fazendo mobilizações para tentar impedir a construção de Belo Monte. Quer dizer, eles pararam de caçar, pararam de pescar, pararam de viver, para enfrentar um projeto de infraestrutura gigantesco que estava anunciado para cair na cabeça deles. Toda mobilização foi inútil porque Belo Monte foi implementada na cabeça deles, acabou com aquela configuração de comunidades ribeirinhas. A vida deles foi bagunçada. Por mais que se pense em uma compensação para essa situação, não tem nada que compense mudar a ecologia de uma ambiente e da vida de centenas de comunidades. Eles tinham um jeito de viver aqui, não tem como compensar isso.

Eu vivo a experiência direta de termos um território Krenak numa região do Brasil onde existem essas fronteiras dos empreendimentos, principalmente de extração mineral. As mineradoras operam na Bacia do Rio Doce desde o século XIX. Agora, com a falta de controle e regulação dessas atividades extrativistas predatórias, uma barragem rompeu-se em Mariana, derramou os tóxicos que estavam em depósito - ocupando uma faixa de 650 quilômetros da Bacia do Rio Doce. Passou pela nossa aldeia, pelo nosso território e a nossa vida foi afetada para sempre. Não tem como você pensar “Mas um dia o rio vai voltar a suprir as necessidades daquela região e vai ter água limpa”. E esse tempo todo? E essas décadas que ficamos privados do convívio com aquele corpo do Rio? E o significado daquele rio? Do povo que vive ali?

As fronteiras extrativistas - principalmente quando ativadas pelo capital financeiro, pela coisa do capitalismo que está assolando o planeta - constituem uma fronteira ativa e invasiva sobre diferentes sítios, diferentes ecologias e territórios. Os povos tradicionais que vivem na natureza são as principais vítimas do extrativismo, pelo sentido de territorialidade de suas histórias; e pela necessidade de viver num lugar onde eles possam se suprir dos recursos.

Agora a bola da vez são os nossos aquíferos. Tem uma grave ameaça pesando sobre a tentativa de comercialização do Aqüífero Guarani - um aqüífero que o Brasil precisa hoje e precisará no futuro. É um dos maiores reservatórios de água pura do planeta, onde as corporações transnacionais querem meter a mão. E o governo brasileiro está muito suscetível a esse tipo de pressão, porque não tem uma política de proteção do mananciais e conservação dessas paisagens naturais.

Se pensarmos no que está acontecendo agora no Amapá, onde o Temer liberando área da RENCA para mineração - é como uma dinâmica de fronteiras fluidas. Pelo menos nos estados modernos sugere-se que essas nações tenham uma visada de futuro onde, estrategicamente, decidem o que vão manter em pé e o que vão derrubar. No caso do Brasil, a pergunta é: nós vamos manter a floresta amazônica; vamos fazer a gestão desse bioma de maneira inteligente; ou vamos derrubar a Amazônia? Como nós ainda não tivemos capacidade de produzir um pensamento sobre a Amazônia que leva em conta os povos que vivem lá, ela continua sendo como uma espécie de território remoto que está integrado dentro das fronteiras do Brasil, mas não está na alma, no coração, no pensamento das pessoas que planejam as política públicas e o meio ambiente. Temos um Ministério do Meio Ambiente que é muito mais ocupado em fazer a administração das nossas mazelas urbanas, das áreas industriais do país, do que em refletir e pesquisar sobre a biodiversidade da Amazônia, nossa maior riqueza. Estamos olhando para o lado do nosso prejuízo e negligenciando a grande riqueza que a gente tem.

Tomara que a gente consiga chamar atenção para grande importância da biodiversidade da Amazônia; e a complexidade das culturas dos povos que vivem ainda hoje com autonomia nessa região. Eles não são reféns da indústria de alimentos. Acho que poderíamos considerar que 70% daquela população é capaz de ter segurança alimentar autosustentada, voltada para pesca, para coleta, para o extrativismo - o que poderia ser uma ideia aproximada de sustentabilidade. Quando você tem ciclos de produção na floresta que suprem as necessidades da população continuadamente, está dando um sinal de sustentabilidade. Quando entra a pecuária, a monocultura nas fronteiras avançadas da Amazônia é que temos conflito entre as práticas tradicionais de manejo desses territórios, além da invasão do extrativismo predatório que vai chegando nessas regiões. Essas fronteiras estão o tempo inteiro se movendo, tanto na horizontal quanto na vertical. Elas avançam em diferentes sentidos.

Quais as principais diferenças entre a noção da fronteira ocidental e daquelas existentes entre diferentes ocupações indígenas?

Ailton Krenak - Os povos do litoral da mata atlântica, que encontravam os colonizadores há 200, 300 anos, sempre tiveram no seu imaginário uma fronteira fluida com os que vivem no interior do país - no Centro Oeste, Mato Grosso. Uma vez eu ouvi uma história muito ilustrativa de um chefe do povo Caiapó, que vive no Xingu, conversando com um Guarani, do litoral de São Paulo - ele disse: “Meu parente, tenho muita gratidão por você. Você ficou durante 200 anos no litoral suportando a presença dos brancos enquanto nós éramos protegidos dessa invasão lá no Xingu. Eles só chegaram lá na nossa terra no século XX, na década de 1940; e na sua terra, eles chegaram há muito tempo, há mais de 300 anos. Vocês tiveram um prejuízo muito grande protegendo nossa fronteira. É por isso que muitos de vocês não falam mais só a língua materna; é por isso que alguns povos do litoral perderam importantes referências da sua cultura ancestral. Isso é decorrente do assédio que sofreram pela cultura dos brancos”.

Essas sobreposições de fronteiras culturais tem a ver com as línguas desses povos; com as práticas culturais; com a medicina; com a alimentação. Todos os hábitos mudam com essa interação entre culturas. Eu sei que tem gente que acha que é uma tendência natural nos constituirmos todos numa espécie de comunidade global, onde as diferenças serão diluídas. Tem gente que acha isso legal, como uma espécie de sinal positivo de que estamos "ok". Eu não vejo essa diluição como um sinal positivo, vejo essa como uma espécie de autofagia. Nós estamos todos perdendo. Ao invés de ser alguém, de ser um organismo daqui atacando um organismo externo, é um organismo comum se autoempobrecendo. Estamos passando por um empobrecimento global onde o que parecia ser positivo é uma perda da qualidade de vida dos povos e da paisagem. Pois a ideia do meio ambiente que foi animada nos séculos passados para alguma coisa ser preservada, hoje está totalmente abalada, estamos nos diluindo.

Que outros territórios são desenhados a partir da articulação entre povos indígenas, como no caso da União das Nações Indígenas (UNI) e da Aliança dos Povos da Floresta? Como essas articulações se relacionam com a ideia da nação brasileira?

Ailton Krenak: Eu acho que cabe mesmo a ideia de associar território com esses lugares, digamos assim, da presença. Hoje em dia está muito em debate a discussão da representação. Como é importante no meio desse fluxo de fronteiras se assegurar de que a nossa diversidade esteja representada. Acho interessante como o tempo configura modas e ideias. A ideia que está configurada agora é da importância de que o lugar de toda diversidade de povos do mundo, de gênero, de tudo, esteja assegurado. Não é curioso? Se formos pensar isso em um debate sobre fronteiras, o que seria esse lugar num mundo móvel? Num mundo com toda essa mobilidade? É um holograma? É um lugar que está o tempo todo se reconfigurando?

Quando pensamos, na década de 1980, a ideia da Aliança dos Povos da Floresta, estávamos buscando criar fluxo entre esses lugares, juntando gente de culturas diversas com uma ideia de uma aliança afetiva. Esse laço afetivo como uma possiblidade de fluxo entre os lugares de presença que cada identidade, cada povo, cada cultura, reivindica. Mas a fluidez entre esses lugares permite que as pessoas continuem cooperando entre si, sendo solidárias umas com as outras e construindo pontes além das fronteiras. Como essas fronteiras são fluidas, podemos pensar também essas pontes como extremamente cambiáveis, que não precisam ter uma mão só, nem ter a dureza das fronteiras, apenas possibilitando fluxos.

Quando, na década de 1990, a Europa começou o debate sobre a União Européia, comunidade européia, eles não sabiam muito bem o que fazer, mas basicamente o que tentaram foi diluir a dureza daquelas fronteiras internas; e criar um fluxo que, inclusive, beneficiasse a economia. De repente, a economia foi mais determinante do que uma vontade cultural de compartilhar. Mas o exemplo vale também para nossa região do mundo - a América Latina. Eu fico olhando a América Latina e sinto como nós temos dificuldade de provocar fluxos criativos de relacionamento, como a gente se relaciona pouco com a fluidez das fronteiras entre nossos povos. Tem gente que diz que o fato do Brasil ter uma língua diferente inibe esse fluxo, mas seria interessante animarmos os fluxos de troca entre os nossos povos e não sermos definidos só pela dinâmica da economia. Não estou falando do Mercosul, estou falando do fluxo das relações que pode se constituir entre os povos. Os Yanomami vivem na fronteira do Brasil e da Venezuela, mas aqui no Cone Sul, os Guarani estão na Bolívia; no Paraguai; na Argentina; estão em todas essas fronteiras intensamente, atravessando de lá para cá, gerando até uns mal-entendidos - como alguns debates políticos no Mato Grosso do Sul que sugerem que os Guarani venham do Paraguai. Quer dizer, você tem que ser muito maldoso, estar com muita má vontade de não entender que historicamente essa região sempre foi compartilhada, que é um território de compartilhamento.

Quais tentativas já foram feitas no intuito de criar uma região de cooperação entre o Brasil e demais países da região amazônica? Pensando na atual crise migratória da Venezuela, qual seria o potencial de acolhimento e abrigo das terras indígenas na fronteira brasileira?

Ailton Krenak : É interessante a gente pensar o seguinte: até a década de 1920-30 nossas fronteiras, principalmente no norte do Brasil, eram totalmente indefinidas. Era uma região que só o Marechal Rondon acessava, com o serviço de fixar as fronteiras do norte em extensão com as linhas de telégrafos. Ele colocou marcos na fronteira do Brasil com a Guiana, com a Venezuela. Existe um numa rodovia internacional que vai de Boa Vista até a Venezuela chamada BV-8 (BV de Brasil/Venezuela), que liga a capital de Roraima com a primeira cidade, se não me engano Santa Helena, na Venezuela. É inclusive por lá que essa grande leva de migrantes está entrando, atravessando a Venezuela em crise para o lado brasileiro; buscando refúgio, ajuda, asilo político, remédios.

Eu falei da década de 1930, mas só depois da Segunda Guerra Mundial é que o Brasil começou a dar importância em criar fluxo com os vizinhos pela Bacia Amazônica, através de relações políticas. No final da década de 1970-80, quando o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi configurado. Parece que essa ferramenta de interação de políticas diferentes - entre 8 países da Bacia - tem sido uma oportunidade de criar pontes criativas. Eu estava numa conferência internacional de práticas integrativas na saúde, sediada no Brasil. A organização pan-americana da saúde, junto com o TCA, promoveram a vinda de gente da Colômbia; Bolivia; Peru; Equador. A melhor maneira de diminuir conflitos é fazendo interação de fluxos, que é muito diferente de fazer integração. Integração é quando um agente ativo captura as identidades alheias; interação é quando todos podem trocar, onde tem mutualidade.

Um tipo de povo pode ver a imigração como uma ameaça e outro pode ver como uma ótima visita, que pode se prolongar, virar troca, virar casamento, virar intercâmbio. Os Ticuna vivem na fronteira do Brasil com a Colômbia, ali no Rio Solimões. Eles caçam, vivem e trocam com gente da fronteira de lá e de cá. Eles não perguntam quem é da Colômbia e quem é do Brasil. Esse seria o exemplo mais bacana de povos que são capazes de viver numa fronteira sem deixar ela virar um limite nas trocas. Acho que é nos territórios indígenas onde isso acontece; e não acontece fora deles porque tem uma coisa chamada propriedade. A diferença é que as terras indígenas não são propriedade, são um patrimônio; enquanto uma fazenda ou uma cidade são propriedades no sentido particular.

Houve um ensaio, que coincidiu com as gestões para implementar o Tratado Cooperação Amazônica (O TCA), que eu acho que teria sido maravilhoso se tivesse evoluído naquela época: O presidente da Venezuela - que vivia um período de muita prosperidade com o petróleo nos anos 1970-80; e que estava bem antenado com tudo que estava e inspirado nos programas da UNESCO para a biosfera - anunciou a decisão de promover a implantação de um protocolo que transformaria a fronteira Venezuela-Brasil numa contraparte de uma reserva da biosfera. Incluiria toda aquela região de floresta do lado brasileiro, que é o território Yanomami. Havia um problema sócioambiental grave no Brasil, onde uma fronteira natural interna das florestas Yanomami estava sendo invadida por uma fronteira econômica desordenada, causando mortandade. Então o presidente da Venezuela anunciou num desses fóruns na década de 1980 que a Venezuela propunha ao Brasil (ao Itamaraty) abrir negociações e configurar uma reserva da biosfera compartilhada Brasil-Venezuela, onde os povos que tinham situação de autonomia vivendo naquela biosfera pudessem permanecer, usando esse instrumento de reserva da biosfera da UNESCO como um mecanismo de resguardo daquele imenso território. Eu achava essa ideia tão avançada.

O território Yanomami possui 11 milhões de hectares. É por isso que costumam insistir que é maior do que algumas nações inteiras na Europa. Se juntar o lado venezuelano com o brasileiro, estaria constituindo uma área de biodiversidade, de cultura, de humanidade protegida maior do que a Costa Rica - considerada a mais relevante área de biodiversidade protegida nas Américas. E provavelmente seria o maior santuário, no sentido de cosmos, pensando toda a complexidade da Amazônia e gente vivendo lá dentro.

No Brasil, ainda vivíamos o fim daquele período autoritário e quando o debate começou aqui, o Sarney, então presidente, reagiu da maneira mais primária: inventando um projeto chamado "Calha norte", que era ocupação da fronteira norte do Brasil com quartéis militares. Isso resultou na implantação dos postos militares, inclusive dentro dos povos Yanomami, na fronteira da Venezuela. Aquilo que era um sonho virou um pesadelo. Do que podíamos ter avançado numa reserva de biosfera entre esses dois países, agora resta a crise migratória.

Essa ideia de uma biosfera integrar estados nacionais com autonomia é muito bacana. Os muitos mapas e cartografias possíveis para esses cenários deveriam animar a gente a pensar um outro mundo, a pensar muitos mundos intercambiáveis que se articulam. Ao invés de ficarmos parados nessa narrativa de mundos fixos, como as de Trump e Kim Jong-un. Quando havia um muro entre as Alemanhas, ele plasmava a mentalidade, ia ficando dentro da cabeça das pessoas. Essas narrativas de fronteiras que não se movem, na verdade, são implantadas dentro das nossas mentalidades, na cabeça, no coração. O trabalho pedagógico de mostrar como as fronteira são fluidas é a melhor coisa que podemos provocar.

Quais são as principais fronteiras em disputa hoje no Brasil? Quais as principais diferenças entre conflitos nas fronteiras Norte e Sul do país?

Ailton Krenak - Se pensarmos na própria ideia das fronteiras do Brasil, vemos que são fronteiras que estão o tempo inteiro se deslocando. São fronteiras fluidas que demarcam ou sugerem limites entre mundos, que podiam ser bem identificados como mundos em guerra. Uma espécie de guerra na qual a primeira camada poderia ser percebida como a insistência em dar sentido de moderno ao que é arcaico. É um avanço de tudo que a gente imagina, ou é levado a pensar que é moderno sobre nossas raízes culturais, sobre a base da nossa identidade como povos. Por que eu uso o plural de povos? Porque somos uma composição de gente que veio de diferentes lugares do mundo. Em algum momento disputando esse território, e principalmente do século XX para cá, ficamos com a ideia confortável que tínhamos um desenho estável do que chamamos Brasil. Isso foi uma ficção porque essas fronteiras nunca se estabilizam, estão em movimento mesmo quando não estão em disputa.

O povo indígena, de todo esse arcabouço, é o que mais sofre as cotoveladas nessa acomodação das fronteira internas no nosso país. Quando pensamos as fronteiras externas, que seriam nossas fronteiras com os vizinhos do Brasil - Bolívia; Colômbia; Equador; a Bacia Amazônica que é um complexo de fronteiras que se alternam ali - são fronteiras culturais, econômicas e políticas com consequências diretas sobre a vida do povo indígena. Isso tem me feito pensar muito na gramática dessas fronteiras. Que escrita que sai de cada camada dessa fronteira? Quando pensamos a realidade de 300 etnias; de 300 povos vivendo no conflito de identidade; conflito de direitos; e na própria ideia de mundo desses povos; na sua diversidade cultural; todas essas fronteiras se articulam. Se pensarmos não só em fronteira como conflito, mas também como possibilidade de interpenetração de mundo, essas fronteiras estão todo o tempo interagindo.