BETO VERÍSSIMO

12/04/2022 - -

Possui formação na área de engenharia agronômica com pós-graduação em ecologia pela Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA). Tem estado à frente de múltiplas iniciativas de combate ao desmatamento e à exploração ilegal de madeira na Amazônia. Cofundador do Imazon, Diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, Acadêmico afiliado da Princeton University, Coordenador do Projeto Amazônia 2030.

Eu trabalho na Amazônia há quase 35 anos. O fio condutor sempre foi a ideia de que a informação de qualidade tem um peso decisivo no destino da região. Todas as coisas que eu faço têm a ver com geração de novos conhecimentos, com informação que faça sentido no contexto sociocultural e institucional da Amazônia, além do político-econômico, que façam sentido no contexto específico da Amazônia, que é um território com muitas questões não resolvidas de direito de propriedade, da própria floresta, que institucionalmente não conseguimos enquadrar no mundo. As soluções para a floresta são sempre desafiadoras. Grande parte do que eu faço é dedicado à geração de novos conhecimentos.

Esse é o lado do pensar, depois tem o lado do fazer. Na Amazônia, você precisa fazer para aprender com as condições objetivas da região. Para mim, fazer é um ato de constante aprendizagem. Você tem uma ideia de como combater desmatamentos e você precisa aterrizar essa ideia. Como construir parcerias locais? Quem são esses atores locais? Tem sempre essas duas coisas: estou pensando, mas estou também fazendo. A minha missão é segurar a Amazônia, a floresta. Meu compromisso é com a floresta. No final do dia, eu estou preocupado com os seres da floresta, as entidades da natureza e as pessoas que estão cuidando dela.

Eu acho que a gente tem uma compreensão muito limitada da importância da floresta, de sua complexidade. Isso não é apenas uma frase de efeito, é uma constatação da ciência. A gente não tem sequer capacidade computacional para entender como funciona a floresta tropical. Ela é o ápice de toda a vida desse planeta. Nunca surgiu nada mais complexo, nenhum ecossistema nesse meio bilhão de anos da vida biológica pluricelular. Ela está aí há 50 milhões de anos e foi diminuindo por oscilações do planeta. No momento em que ela está mais reduzida, por outros fatores, a humanidade, com suas pressões, a põe em risco. Para mim, é uma questão mais existencial. Eu vou fazer tudo, entre o pensar e o fazer, coletivamente, e usar todo o meu tempo. A nossa geração não é capaz de entender, e de proteger a floresta como ela merece. Trata-se mais de passar o bastão, da melhor forma possível, para a geração futura. Vou contribuir para que a gente entenda um pouco mais, conserve o máximo possível e construa a melhor narrativa cultural. As instituições das quais eu participo são instrumentos disso; elas não são o fim por si mesmas, estão aqui para servir a esse propósito. Essa é uma tarefa coletiva, tem muita gente fazendo, com maneiras diferentes de contar essa história. Parece que eu estou fazendo coisas demais, mas elas todas estão conectadas. Às vezes eu penso que estou envolvido com muitas coisas, mas elas têm um senso de ordem. Eu estou preocupado com a questão da existência da floresta, com esse dever moral e cívico.

Todo dia aparece mais uma razão utilitária para manter a floresta. Todo dia a gente aprende que a floresta é mais importante e mais necessária para o clima, para a biodiversidade e para os ciclos hidrológicos. Agora, tem uma outra dimensão que é o porquê, a gente não salva as coisas apenas por razões utilitárias; tem de ter uma razão maior. Aí entra o papel de outras dimensões, que eu não estou navegando no meu trabalho, mas que são importantes: a cultural, a espiritualidade... Se ficar só na dimensão da ciência e da economia, a dimensão da razão não dá conta do problema. Não vamos conseguir resolver só com as dimensões da razão.

Eu acho que lá fora há essa compreensão da importância da Amazônia em termos climáticos e da biodiversidade. Há também uma questão cultural dos povos indígenas, eles de fato têm uma ressonância em camadas intelectuais, de formadores de opinião e em lideranças. No Brasil, em geral, eu acho que a Amazônia é pouco entendida. Pouca gente visita a Amazônia, temos poucos pesquisadores brasileiros estudando a Amazônia. O Brasil está um pouco de costas para a Amazônia. A Amazônia é tratada como um consenso oco, em que todo mundo diz que é importante, mas todas as vezes que ela foi ameaçada não houve mobilização nas ruas a defendendo. Talvez ainda apareça, mas, por enquanto, não. Todo mundo fala da importância, mas a ação é pouca.

Na Amazônia, há experiências interessantes. Temos os povos originários no front da luta pela defesa da floresta. Temos uma geração que estava envolvida com organizações socioambientais e foram para lá, como eu ou outros pesquisadores. Temos um grupo pequeno, mas aguerrido, de brasileiros em instituições de pesquisa e nas universidades que conseguiram ter um trabalho extraordinário de inovação, de criação de áreas protegidas e de monitoramento da floresta. Temos a esperança de que as soluções brotarão de lá, como no passado: a luta do Chico Mendes, a autodemarcação... A própria arqueologia avançou bastante, e alguns arqueólogos brasileiros estão na liderança intelectual. Eu acho que, pelo menos em Belém, as pessoas estão conectadas com sua origem cultural. Claro que existem pessoas que chegam na Amazônia com outros interesses, não entendem a floresta e geram conflitos na região. Mas a resistência em defesa da floresta veio da própria Amazônia, veio muito pouco do resto do Brasil e veio um pouco do apoio internacional. Esse apoio, no entanto, não é massivo, é um apoio em camadas; mas muito importante, porque é formado por camadas de poder político e financeiro. Isso já é uma boa contribuição.

Quando eu vim trabalhar na Amazônia, em 1987/88, a região enfrentava muitos problemas ambientais e sociais. Havia muita violência, assassinato de lideranças ligadas aos movimentos sociais, e o desmatamento estava fora do controle. Houve um início de um esforço de políticas públicas durante o governo Sarney. Essa sequência foi avançando, cada governo fazendo um pouco mais: Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula. Estávamos em um período de aperfeiçoamento de políticas de combate ao desmatamento, isso gerou resultados importantes até o primeiro mandato da Dilma. No segundo mandato, com a crise política, o impeachment, a entrada de Temer, o desmatamento começa a aumentar. No atual governo, o Brasil perde o controle e a situação se agrava muito.

Eu faço essa perspectiva porque é como se, de alguma maneira, estivéssemos voltando para os anos 80. A situação é similar, em termos de escala. Temos garimpo, extração de madeira e desmatamento em patamares quantitativos muito parecidos. A diferença é que nesses 30 anos fomos descobrindo o quanto a floresta é mais importante. Nos anos 80 não tínhamos esse entendimento, a agenda do clima estava nascendo e não se falava em mudança climática. Já nos preocupávamos com a Amazônia, mas esse entendimento do motivo pelo qual a floresta precisa ficar de pé só se aprofundou nesse período. De forma paradoxal, nós entendemos mais, o mundo entendeu mais, há mais pessoas conscientes no Brasil (ainda que insuficientemente), temos mais conhecimento de como fazer, mas, ao mesmo tempo, as coisas pioraram muito.

Isso mostra que um governo pode fazer muita coisa ruim ou muita coisa boa. O poder do Estado é muito grande, principalmente na Amazônia, onde temos 2/3 do território nas mãos dos governos federais e estaduais. Isso em terras indígenas (no sentido de que os indígenas têm usufruto da terra, mas não possuem a posse), nas unidades de conservação, nas áreas de reforma agrária e nas áreas que não estão destinadas. Isso tudo soma 2/3 do território. Quando o governo pega esse patrimônio e decide ter políticas antifloresta, o resultado é trágico, como estamos tendo agora. Não há demarcação, há redução de área, redução de fiscalização, permissão para o garimpo, redução no esforço de combate à extração ilegal de madeira. O resultado é a piora. Esse resultado não é por acaso, é um projeto de governo. A situação é extremamente grave, isso nos coloca em uma situação difícil.

A Amazônia está com 20% do território desmatado, e os cientistas estimam que mais 20% de seu território seja composto por florestas degradadas (que aparecem na estatística como floresta em pé, mas são florestas que estão na UTI ou na enfermaria). Se tivermos eventos climáticos extremos, como secas e El Niños, possivelmente o fogo vai se espalhar nessas florestas que estão “hospitalizadas”, e elas morrerão rapidamente. Podemos, em menos de 10 anos, chegar ao ponto do não retorno, temido pelos cientistas. Ou seja, a partir daí, mesmo que o mundo resolva agir, que o Brasil crie juízo, já era. A floresta terá entrado em um processo irreversível de savanização, no qual não haverá mais conserto no sentido do nosso tempo, do nosso tempo histórico. É uma situação extremamente grave e que se resolverá nessa década. Do jeito que as coisas estão indo, para salvar ou para condenar, só temos essa década. Precisamos de um esforço extraordinário de contenção do descalabro que está acontecendo. Talvez esse de fato seja o momento mais difícil da existência da floresta ao longo de sua convivência com os humanos.

Os humanos estão aqui há 14 mil anos, durante 99,9% desse tempo eles não causaram problemas, interagiram muito bem com a floresta. Essa floresta é produto também dessa interação cultural com os povos originários. Depois, chegaram os brancos, mas, ainda assim, não causaram grandes problemas. Até que, nos anos 70, cria-se essa confusão toda. E ainda mais durante os últimos três anos, que é uma fagulha nesse tempo. É um tempo curto, mas dramaticamente danoso e assustador.

No Amazônia 2030, nós elaboramos o que talvez seja a melhor síntese para essa questão. Vamos olhar só o copo meio cheio nessa primeira parte da resposta: temos 83 milhões de hectares desmatados, o que corresponde ao tamanho da Alemanha e da Espanha em área desmatada. Ou seja, em 40 anos desmatamos tudo isso. Dessa parte, 30% estão abandonadas. Houve o desmatamento, mas essas áreas não estão mais sendo usadas, é terra degradada. Além disso, 60% são subutilizadas, sendo somente 10% agronomicamente bem utilizadas. Isso significa que temos muita área desmatada que poderia abrigar toda a demanda de expansão de cidades, de mineração industrial, de reflorestamento... O Brasil poderia, nos próximos 10 anos, usar essas áreas abertas sem precisar desmatar mais.

O resto, os 330 milhões de hectares de floresta, tem todas essas coisas que estamos descobrindo. A primeira boa notícia é que não precisamos desmatar essa floresta, não faz sentido econômico. O sentido econômico é aproveitar as áreas que já foram desmatadas. A floresta não é um vazio econômico nem social. Tem pessoas morando e agindo economicamente. Elas precisam de ajuda, de apoio. É preciso levar internet e energia. Essas pessoas podem ser incorporadas ao século XXI sem perder as condições de usufruir da sua cultura.

Podemos gerar riqueza na floresta. A floresta está trabalhando sem parar pela humanidade. A gente tem de pagar para essas florestas, é preciso um mecanismo de transferência para esses povos que estão fazendo um trabalho de guarda-parque para a humanidade por um custo ridiculamente baixo. A humanidade tem de criar um mecanismo de manter a floresta em pé remunerando bem essas pessoas. Podemos imaginar vários mecanismos, desde transferência de renda (bolsa-floresta, bolsa-verde) até pagamento de serviços ambientais por mecanismos não muito complexos. O satélite vai fazer com que ele mantenha essa floresta. É uma discussão complicada sobre quem tem direito de receber. Essa confusão toda faz com que estejamos há 10 anos patinando em torno disso sem avançar.

Tem muita gente na Amazônia; muitos jovens que estão sem emprego e sem educação qualificada. É preciso uma agenda para essas pessoas. Talvez a solução não esteja na floresta nem na área desmatada e, sim, nas cidades. As pessoas na Amazônia poderiam se conectar com o mundo se tiverem uma internet melhor. Os estudos mostram a vocação da nossa juventude e como ela pode se inserir no mundo. Qual é o diferencial da Amazônia? Ainda precisamos descobrir, não está claro o modelo. Por isso pensei em criar o Centro de Empreendedorismo.

São três coisas: pessoas jovens (que representam oportunidade de desenvolvimento), floresta em pé (valor estratégico) e muitas áreas desmatadas (que podem ser aproveitadas para muitas coisas, inclusive reflorestar e sequestrar carbono). Olhando tudo isso, há um plano para apresentar. O Brasil já mostrou que sabe como combater o desmatamento. Agora é preciso acoplar o combate com alguma solução socioeconômica. O Amazônia 2030 está focando em qual é a solução que podemos testar. Eu tenho esperança de que uma mudança de governo no Brasil, para um governo mais democrático e responsável, possa trazer o desmatamento para taxas mais administráveis. No próximo ciclo político, teríamos condição de trazer o desmatamento para próximo do que era em 2012: em torno de 4 ou 5 mil km². Hoje estamos em 13 mil km². Precisamos baixar para 4 ou 5 mil até 2026 e, de 2027 a 2030, aprofundar o ganho e chegar em um número ainda menor. Para isso, precisamos incluir os jovens, melhorar as cidades, criar mecanismos de transferência para a economia da floresta e incrementar uma agenda de uso das áreas desmatadas em escala maior. Agora, precisamos cortar o desmatamento absolutamente excessivo, desnecessário e criminoso.

A redução do desmatamento no ciclo de 2004 a 2012 foi fruto de um entendimento claro de como se movia o desmatamento. Há uma abundância da floresta. Essa floresta era livre para quem chegasse, e o Estado tinha dificuldade em exercer o seu papel de ordenador desse território tão grande. O Estado brasileiro, nos anos 70 e 80, abriu muitas estradas e frentes de ocupação. A cada estrada aberta se criava uma condição favorável para a ocupação irregular, para a invasão e para o desmatamento.

O necessário era fechar a fronteira. Como? Criando áreas protegidas, mudando radicalmente o incentivo da terra. A busca da Amazônia era a busca pela terra. As pessoas vendiam madeira, ocupavam e esperavam, no mínimo, vender essa terra quando uma estrada passasse. Essa foi a dinâmica que moveu o desmatamento, principalmente até os anos 90.

Nos anos 70 e 80, o governo queria que desmatasse, ele pagava para desmatar. A política era: te dou o título da terra se você a desmatar. O desmatamento era a política oficial. Nos anos 90, a política já não era essa, o governo reconheceu o problema e também não tinha mais dinheiro para pagar pelo desmatamento, devido à crise fiscal. O desmatamento passou a ter outra característica. Por que o desmatamento continuava? Porque as forças econômicas continuavam avançando para a floresta, se beneficiando do estoque excessivo de estradas-fantasmas abertas. Toda nova estrada criava uma nova onda de ocupação. O que aprendemos a fazer? Criar um muro de unidade de conservação bloqueando essas frentes de expansão. As unidades de conservação titulam a área em nome da conservação, elas inibem o invasor porque ele nunca conseguirá ser titular da área se invadir.

O desmatamento é um investimento, custa de mil a 2 mil dólares desmatar um hectare, então não é rentável entrar em uma área protegida, como terras indígenas ou parques. A criação desses parques foi estratégica. Não houve um aumento da fiscalização, mas havia satélites melhores, uma fiscalização mais inteligente e punitiva, capaz de destruir o equipamento do infrator. Esse conjunto de medidas foi o que deu resultado, foi muito bem pensado. Muitas áreas foram criadas entre 2003 e 2006, principalmente. Criamos uma área duas vezes maior que o tamanho da Califórnia em unidades de conservação na Amazônia. É muita coisa, mas ainda sobrou uma área correspondente ao tamanho de uma Califórnia e meia para ser criada, porque não deu tempo de fazer tudo. Esse pedaço que faltou é onde hoje temos muito desmatamento e grilagem. Precisamos completar esse trabalho. Nós sabemos exatamente onde estão esses polígonos, essa informação espacializada é muito clara.

Temos um mecanismo legal, um rito de criação de terra indígena e um conjunto de instrumentos disponíveis que ainda não foram totalmente desconstruídos pelo atual governo (se ele ficar mais um tempo, vai desconstruir). Ainda podemos voltar a operar com esses mecanismos que são constitucionais, que estão no topo do nosso marco legal.

A tecnologia sempre é uma promessa, e ela pode ter um papel importante, mas ela não vai conseguir resolver o problema no tempo que precisamos. A questão da Amazônia precisa ser resolvida ainda nesta década, e a tecnologia não vai estar pronta para dar as respostas aos nossos problemas. Eu acho que, principalmente, precisamos melhorar alguns aspectos da tecnologia que são necessários agora. A boa notícia é que isso já está avançando. As imagens dos satélites hoje são muito melhores, são usadas para combater o crime, mas também para gerar novos conhecimentos. O sistema LIDAR (Light Detection and Ranging) nos permite detectar, debaixo do dossel, os sítios arqueológicos. Eu acho que valeria a pena aplicar esse sistema na Amazônia. Nós descobriríamos diversos sítios arqueológicos e poderíamos delimitar e proteger essas áreas. No campo do conhecimento da biodiversidade, a possibilidade de realizar o sequenciamento de genomas seria fantástica. A ciência está pronta para fazer isso.

Um terceiro caminho seria levar internet para as comunidades. Os garimpeiros já têm internet de boa qualidade, e os povos indígenas, que estão brigando com os garimpeiros, não. Fizemos uma campanha para levar uma placa solar e internet para os Mundurukus, mas eles ainda estão pouco equipados. Os jovens indígenas querem entrar na tecnológica sem perder a cultura. Eles querem aprender a filmar. O Centro de Empreendedorismo deve focar em levar para aqueles que estão na última milha, os quilombolas e os indígenas, a melhor tecnologia possível. No momento em que tiver internet e eletricidade, é preciso levar as melhores formas para organizar ideias de negócios, NFT, Blockchain... Dar a esses jovens, que estão na ponta, as condições para lutarem por seu território em condições mais razoáveis. Eles estão enfrentando uma tropa do mal superequipada e não têm nada para se defenderem. Algumas agendas nós podemos fazer agora, em parte, fora do Brasil. De certa maneira, temos tecnologias aliadas nesse curto prazo, mas eu não acho que o Vale do Silício vai resolver o nível de complexidade que têm as florestas tropicais. Precisamos de algumas coisas da tecnologia, mas outras, não. Agora precisamos de boas políticas públicas. Despois de 2030, quando entregarmos o bastão para a próxima geração, espero que essa tecnologia possa fazer uma diferença maior.

As sociedades indígenas eram mais sofisticadas, mais complexas e mais numerosas que as nossas. A arqueologia está mostrando que havia entre 5 e 10 milhões de indígenas na Amazônia antes da chegada dos europeus. Esses povos domesticaram 90 e poucas espécies de plantas. O processo de domesticação é um processo de sofisticação de uma sociedade, ainda mais em uma floresta tropical que tem milhares de espécies. Para isso, é preciso ter uma capacidade de entender a autoecologia de uma espécie, separá-la, fazer melhoramento genético... O cacau foi domesticado, a mandioca, o açaí, o maracujá... Os povos também manipularam seus territórios, criando solos orgânicos. O solo terra preta dos indígenas é quase eterno, capaz de resistir milhares de anos sem perder sua fertilidade. Havia uma sociedade orgânica. As pessoas não vão encontrar monumentos de pedra porque não tem pedra na Amazônia, é uma sociedade de barro. Encontramos cerâmicas sofisticadas de barro.

A arqueologia está mostrando, por meio do sistema LIDAR, que havia uma rede de estradas. Isso nos dá uma pista do destino da Amazônia. Não é um ambiente para ser simplificado e domesticado, os indígenas já tinham entendido isso. É um ambiente natural que precisa ser mantido dessa forma. De fato, teremos de restringir a ocupação humana intensiva nesses 20% já desmatados, que é uma área muito extensa. Precisamos proteger a floresta. Se vamos usá-la, deve ser com o conhecimento acumulado pelos povos indígenas, que a manejaram para produzir qualidade de vida para 5 ou 10 milhões de pessoas. Quando encontramos restos humanos nas escavações, é possível ver que a dentição era boa. A vida não era no limite, era uma vida de abundância.

É preciso uma lente para entender a floresta, em geral, só os povos originários, os botânicos e os ecólogos conseguem entender. A maior parte das pessoas enxerga como uma bagunça, acham que é uma coisa caótica. O ocupante prefere destruir o que não entende. Essa é uma questão um pouco mais profunda. Temos motivos racionais para não destruir, mas o forasteiro não tem o menor apreço pela floresta. Ele a vê como o nada. Ouvimos isso: “Aqui não tinha nada. Nós chegamos e colocamos soja. Antes não existia nada”. Isso reflete a forma como os brasileiros, o agronegócio e os setores que migraram para a Amazônia entendem a floresta.

Por último, o Eduardo Neves diz que, de certa forma, todos os povos têm os seus templos e seus grandes monumentos. Os egípcios não aceitariam uma nova ocupação que destruísse as pirâmides. Ou os peruanos não deixariam destruir os monumentos incas ou Machu Picchu. Ou derrubar a Torre Eiffel em Paris, porque descobriram uma jazida de petróleo abaixo dela. A floresta é o nosso grande monumento cultural, é produto da nossa interação. Esse passo cognitivo precisa ser dado. Se a floresta for percebida como patrimônio cultural e natural, sua destruição seria algo que fere profundamente o senso de pertencimento do brasileiro. Vai além das razões utilitárias. Essas razões são necessárias, mas são insuficientes para segurar a floresta. Precisamos ir além disso.

A Amazônia só vai sobreviver se estivermos em um regime plenamente democrático. O governo atual não se preocupa com a Amazônia, é um governo antiamazônia. O futuro da floresta vai depender de uma mudança de governo, senão teremos um ambiente de conflagração, cujo desfecho pode ser atingir o ponto de não retorno. Aí será tarde demais. Eu temo muito por uma reeleição, teríamos uma situação extremamente dramática. Não diria que é irreversível, porque a dinâmica humana sempre traz alguma esperança, mas eu diria que seria extremamente difícil mudar o patamar. A mudança política pelo voto e pela democracia é absolutamente essencial. Cada voto, cada ato, cada manifestação, cada pressão conta. Essa é a batalha da existência humana, do ponto de vista dessa relação “nós humanos x entes não humanos”. Esse é o momento mais importante, até agora, de nossa existência por aqui.