VITA SUSAK

06/03/2022 - -

Pesquisadora independente e membra da Sociedade Acadêmica Suíça para Estudos do Leste Europeu. Doutorado em História da Arte pelo Instituto Estatal de Estudos de Arte em Moscou (1997). Antiga chefe do Departamento de Arte Moderna Europeia da Galeria Nacional de Arte de Lviv (1992–2016). Antiga professora na Universidade Nacional Ivan Franko (2011–2015).

É absolutamente lógico que as pessoas estejam em guerra. A condição de vida, de vida normal, já não existe mais. As pessoas estão vivendo em péssimas condições. Todo mundo sabe que, em última instância, o fim da Primeira Guerra Mundial foi provocado pela gripe espanhola, quando todos os soldados, de ambos os lados, ficaram muito doentes. Esse foi um dos mais importantes ímpetos para deter esta guerra. Creio que a pandemia da Covid-19 deu às pessoas mais dois anos antes da guerra na Ucrânia. Se não fosse pela pandemia, eu acho que Putin teria começado mais cedo. Mas, com esse novo vírus, ele também teve de esperar. Ele também não sabia quais consequências essa doença poderia trazer. A partir do momento em que entendemos que essa doença não era mais tão perigosa, acho que isso ofereceu uma luz verde para esse monstro. A meu ver, a Covid foi uma pequena pausa antes da guerra. Outra coisa que tenho em minha mente é que tudo isso se trata de um jogo com a humanidade. O vírus se tornou uma forma de ver o que acontecerá a seguir. Ele mostra que podemos nos organizar, encontrar soluções e sobreviver. Alguma explicação política pode ser mais inteligente e até mais racional, mas eu tenho esse tipo de sentimento.

É tão difícil falar sobre o que acontecerá amanhã. Antes da guerra, é claro, nós estávamos falando sobre isso. Ao discutir, aqui na Suíça, com meus colegas de outros países, pensávamos que uma nova variante de vírus ou bactéria será absolutamente inevitável. Ela virá. Com todas essas variantes de vírus, é absolutamente claro que elas se transformarão e aparecerão em novas formas. Antes tínhamos as gripes, a AIDS... A humanidade pôde reagir a elas com alguma capacidade e, na verdade, elas não se demonstraram tão perigosas. É claro que se trata de doenças ruins, mas no final das contas não tão nefastas. Certamente teremos novas variantes de vírus e bactérias e, com isso, novos desafios para a humanidade. Isso é uma coisa, e a guerra é outra, mas, de certa forma, uma usa a outra.

É uma questão muito complicada. Podemos falar longamente sobre isso e em direções muito diferentes. Todo este mito sobre a extensão territorial da cultura russa e a posição da Ucrânia como parte dela foi preparado por muitos anos no imaginário da maioria das pessoas na Rússia. Eles estão certos de que a Ucrânia absolutamente não é um Estado nacional. Não sei como eles construíram essa ideia na cabeça de tantos cidadãos russos, provavelmente apenas pessoas mortas podem nos ajudar a entender. E esta é uma história muito longa. Ao longo de toda a história da Rússia, eles tiveram problemas com o território da Ucrânia. Eles começaram a dizer: “Ah, esse é o começo de nossa história”. Mas esse não é o caso; não está no território do atual Estado russo. Dá para imaginar se a França começasse a dizer: “Nosso passado foi tão grandioso que precisamos retomar a Itália, a Alemanha etc.”? Não, é absolutamente impossível. As pessoas na Rússia estão de alguma forma certas de que este foi o início do grande império russo, e que a Ucrânia não existia. Os historiadores ucranianos têm sido ativos neste debate. Mas somente após a guerra eles receberam a possibilidade de falar abertamente, antes havia somente algumas publicações sobre isso. Trata-se de um discurso dominado pela Rússia, o qual será muito difícil de desconstruir.

Você acha que, enquanto a Rússia tenta desconstruir a Ucrânia, está causando involuntariamente sua própria fragmentação e desconstrução, como podemos ver com as massivas manifestações internas e a guerra que Putin está travando contra seus próprios cidadãos dissidentes?

Se a Rússia não vencer, caso a Europa ajude a Ucrânia e, assim, nós sobrevivamos como um Estado independente, podemos imaginar que esta guerra seria o início da desconstrução do império russo. Por outro lado, se a Ucrânia se tornar vítima desta guerra, e a Rússia restaurar sua fronteira dos tempos do início da União Soviética, então todo o território ucraniano se tornará um grande gulag – um campo de concentração da União Soviética.

A Europa, entretanto, não ajuda. É absolutamente uma repetição dos 30 anos com Hitler, quando a Europa concedeu pequenos pedaços de países e pensou: “Tudo bem, provavelmente é suficiente para eles; provavelmente é o bastante para apaziguar este regime nazista”. Só que, para Putin, é outro tipo de regime, trata-se da reconstrução da Grande Rússia. O nome da União Soviética é apenas outro nome do Império Russo. Não posso dizer o que o amanhã nos reserva, mas a história infelizmente nos mostra que pode ser a Ucrânia a vítima.


Eu nasci na União Soviética. Essa foi também uma das primeiras identidades que foram destruídas na época da Perestroika. Eu tinha apenas 20 anos de idade, essa foi a primeira grande desconstrução de mim mesma. E, mais tarde, ir estudar na Rússia foi como uma escolha para mim. Quando comecei meu curso em São Petersburgo, recebi todo esse conhecimento sobre a grande cultura russa, sua arte e literatura. E era uma dúvida para mim: “O que devo fazer para meu desenvolvimento pessoal como profissional? Devo começar a fazer pesquisas sobre os grandes artistas russos, ou posso fazer minha pesquisa sobre artistas absolutamente esquecidos e desconhecidos, que eram ucranianos?”. E eu, como ucraniana, disse a mim mesma: "Ok, vou tentar fazer algo que é absolutamente ignorado”. E assim escolhi Alexis Gritchenko como tema de minha dissertação, um artista ucraniano que estava ativo em Moscou no período de vanguarda.

Nos anos 1990, a Rússia não estava tão forte e estável, logo após toda a destruição decorrente do fim da União Soviética – havia uma espécie de nostalgia. Mas eu gostava de meus colegas de curso, de meus amigos em Moscou, e havia uma comunicação normal e pacífica. E quando eles mencionavam a grande avant-garde russa, eu contestava: “Ok, mas estes artistas nasceram na Ucrânia, cresceram e receberam sua primeira educação artística lá...”. Mas para eles era tudo sobre o grande império russo. E eu avaliava que precisávamos de um pouco mais de tempo para construir nossa história ucraniana, nossa história da arte, a história de nossa literatura. Agora, tenho esta pergunta: quem é mais responsável, os intelectuais – que deram todas essas ideias distorcidas em suas publicações, em seus campos de influência, em suas discussões – ou os militares estúpidos – que pegaram essa ideia e a colocaram em prática? Quem é o culpado?

Isso é uma coisa que você pode ver em nossa história repetidas vezes. Tivemos tantos movimentos e tantos êxodos que deslocaram pessoas de um país para outro. Há sempre a pergunta: o que acontece quando as pessoas mais instruídas deixam o país? O que acontece com a metrópole? As pessoas com melhor formação estão saindo deste país agora mesmo. Isso já ocorria antes da guerra, é claro, porque os jovens intelectuais buscavam obter uma boa educação na Europa ou nos Estados Unidos. Este processo começou antes da guerra. Durante a guerra, no entanto, esse número cresceu vertiginosamente e milhares de pessoas partiram.

Podemos comparar isso com a história da Rússia: quantos deixaram a Rússia após a Revolução de Outubro? Muitos! Mas, parece-me que a base deste território confere novas forças para o aparecimento de novas pessoas, muito inteligentes e perspicazes. A Alemanha, por exemplo, após a destruição absoluta, se reconstruiu rapidamente. Para mim, não é a questão de que tantas pessoas deixaram a Ucrânia, é de se a Ucrânia permanecerá como um Estado independente. Se a Rússia persistir com este ditador, o perigo, para nossa civilização, também perdurará. Não sei qual preço teremos de pagar, nem qual será a solução, mas, para mim, é absolutamente claro que a Europa e a Ucrânia conseguirão se reconstruir sozinhas. As pessoas que estão ficando na Ucrânia, que estão lutando contra Putin, são de uma nova geração, uma geração muito inteligente de pessoas incríveis e que não querem deixar a Ucrânia. Eles preferem ser mortos, mas tendo lutado, a fugir do país.


Foi uma pena que as pessoas só tenham começado a se interessar pela cultura ucraniana depois que esta começou a ser ameaçada. Estou em contato com um colega historiador de Kiev, e sei o que os trabalhadores do museu estão fazendo por nossa coleção de arte. Trata-se de uma coleção muito rica construída em cima dessa herança comum que nós temos – não só ucraniana, mas também polonesa. O trabalho dos historiadores está ajudando a preservação da obra, embalando-as com diferentes materiais, cobrindo-as ou colocando-as nas cavernas, sob o solo... Também sei que alguma parte da coleção foi digitalizada – porém não todas as coleções, e uma obra de arte digitalizada não é a mesma que a obra original – mas ainda assim. Não sei o que vai acontecer com todas estas obras de arte. Em relação à arquitetura, infelizmente, alguns monumentos estão sendo destruídos. Em Lviv, minha cidade, as pessoas adoram as suas obras de arte, e estão protegendo os vitrais, as esculturas, as estátuas, as construções... Quando foi possível colocá-las em um bunker ou em um porão, eles o fizeram. Mas, se os russos vierem, acho que será como com a Crimeia, quando eles levaram as melhores obras dos museus da Crimeia para Moscou. Eles as levarão. Eu, no entanto, prefiro acreditar que eles não as destruiriam (embora tenham destruído algumas artes nacionalistas na invasão da Crimeia).

Eu posso observar algumas tendências. Antes, eu já havia recebido convites para dar palestras sobre a avant-garde ucraniana na Europa, em Tóquio, Paris e Irã, por exemplo. Mas a arte ucraniana estava esquecida. Eu, no entanto, prefiro ser uma historiadora da arte absolutamente desconhecida.

Naturalmente, é absolutamente necessário conhecer mais sobre esta pequena cultura e, portanto, difundir o conhecimento sobre ela. Em minhas apresentações, digo que, para a maioria das pessoas, não é tão confortável dedicar tempo para compreender uma pequena cultura de 40 milhões – seja ela ucraniana, bielorrussa ou georgiana. É tudo russo. Por que é tão difícil começar a abrir-se para algo novo? Temos de dar liberdade ou alguma independência à região basca na Espanha, ou esta é pequena demais? Qual é a medida que possamos conceber para separar uma determinada cultura? Quando falamos da Suíça, por exemplo, que é muito, muito pequena e não é conformada por uma única cultura. Lá, temos a francesa, a alemã e a italiana, as quais estão juntas. No entanto, ninguém é capaz de questionar e dizer: “Ah, essa aqui não existe”.

O apoio é enorme. Posso dizer que o apoio dos cidadãos comuns é mais eficaz do que a assistência dada pelos governos de outros país. Ontem, em Zurique, houve uma manifestação com cerca de 40 mil pessoas presentes. Ontem eu estive na Basileia, onde havia inúmeras pessoas protestando também. E sei que o mesmo aconteceu em Genebra, em Zurique e em outras pequenas cidades da Suíça.

A ideia e a vontade de ajudar são enormes. Isso é também um reflexo da quantidade de ucranianos que estão na Europa e na América trabalhando. As pessoas que estão se mobilizando são pessoas normais e bem-educadas, trabalhando para ajudar os ucranianos, coletando dinheiro... É agora um grande drama a possibilidade de a Ucrânia não existir mais; seria um grande trauma. Os países europeus também estão sob defesa. Este apagamento não pode ser uma possibilidade. Putin não pode destruir essa experiência, essa memória e potencial dos 30 anos de existência da Ucrânia e de sua nova geração que já está ativa. 

Sim, poderia ser muito bonito. Mas, neste momento, não posso dizer nada sobre o que podemos imaginar para amanhã. Tenho um desejo muito grande e espero que algo aconteça na Rússia, que esse monstro possa ser destruído. Não posso, no entanto, excluir a possibilidade de que a Ucrânia possa ser destruída. Isto seria uma tragédia muito grande, para mim pessoalmente, para meus amigos próximos, para a minha geração. Seria uma tragédia absoluta para toda a humanidade, para a Europa. No entanto, hoje, neste momento, simplesmente não consigo saber como vejo nosso amanhã e depois de amanhã.